Eu tinha medo do escuro.
Pensava
não nos monstros imaginários que as cantigas de ninar me diziam que viriam me
atacar à noite, mas nas pessoas que não podiam ser combatidas com um simples
“não” em uma singela voz infantil. Nas pessoas cujas negações teriam mais valor
aos demais do que as lacerações no meu corpo.
Eu
tinha medo do escuro.
No
escuro os sons se misturavam e eu não sabia mais o que era o que. Eu não sabia
se meu cedro de princesa não era a arma de um agressor. Eu não sabia se a
respiração ofegante era a fuga do mundo lá fora entre as paredes do meu quarto
ou mais um deles vindo se saciar sobre a minha pele.
Do lado
de fora sempre havia risos. Eu já conhecia aqueles risos forçados, eram
exaustivamente ensaiados para que os frequentadores acreditassem que elas se
divertiam com suas piadas sem graça e suas histórias inventadas sobre suas
glórias na guerra.
Eles
não eram honrados como diziam, nenhum deles era exatamente um vencedor, alguns
deles sequer foram de fato pra guerra. Todos aqueles anos assistindo as
mulheres da casa sendo treinadas para mentir me deixaram um pouco mais esperta
para as mentiras dos homens também. Elas sabiam que eles mentiam, mas
precisavam deixa-los felizes, homens felizes pagavam os valores cobrados e não
as machucavam tanto. Da última vez que um homem não gostou do riso forçado de
uma delas, a noite terminou com um funeral.
Entre
vários deles, algumas delas se escondiam no meu quarto para ter um minuto pra
chorar antes do próximo cliente. Eu não reconhecia suas vozes, todas elas
pareciam iguais chorando e nenhuma jamais dirigiu a palavra a mim. Não as
julgo, todas deviam parecer sempre felizes e chorar era um péssimo negócio.
Mas
alguns me descobriram apesar de eu me recolher sempre antes das 20h. São os
mais antigos e ai de mim se eu ousar reclamar, como se possuir meu corpo fosse
um bônus, um brinde para cliente VIP.
Não era
deles que eu tinha medo - embora fosse sempre extremamente doloroso quando
qualquer deles entrava em meu quarto pela madrugada - meu maior medo é que
outro dos monstros de carne e osso os visse entrando na única porta que nunca
abria nas noites de serviço, e tivesse a ideia de descobrir o que tinha lá
dentro. Tinha eu, pequena de camisola rendada, e eles adoravam isso.
Os
tempos naquela época eram difíceis pra todo mundo e a casa onde eu vivia era
quase como um desvio de realidade pra esses homens. Lá sempre tinham mulheres
bonitas rindo de suas piadas idiotas e elogiando suas performances
fraquíssimas. Na vida real sua beleza era forjada por excesso de maquiagem e
roupas remendadas enquanto por dentro choravam como as meninas desamparadas que
sempre foram, enquanto eles tinham na simples capacidade de nos violar o único
respiro à sua covardia forjada por balas e sede de sangue.
Eram
covardes. Sim, eram covardes. Um ou outro ostentava medalhas de lata por ter
perdido um braço em uma explosão, ou ter impedido que um irmão morresse
queimado. Mas eles sabiam que seu heroísmo era uma farsa e descontavam em
nossos corpos. Nossos, inclusive no meu que não pertencia às noites de gala
falida e doses de Martini barato.
Eu
tinha medo do escuro porque não importava o tamanho infantil do meu corpo, cada
um que me descobria dentro daquele quarto fechado se sentia um explorador em frente
ao tesouro. Entrar no meu quarto era contra as regras porque minha mãe não
cobrava pelo meu corpo, mas também não fazia nada para impedir seu uso quando
flagrava seus bons fregueses entrando pé ante pé na penumbra do cômodo.
Eu não
pertencia a mim mesma. Mamãe repetia isso com frequência às meninas que lá
trabalhavam, para que não se sentissem tão violadas, afinal, como podiam se
sentir violadas se o corpo delas não as pertenciam? Mamãe não era uma boa
pessoa, mas era quem eu tinha na vida, junto à casa onde as meninas chegavam
com medo e seguidamente saíam em macas com corpos cobertos por lençóis.
Antes
de meus seios se mostrarem em meu corpo magro de fome, já havia perdido a conta
de quantas delas nos deixaram assim. E ninguém dava a mínima.
Nem pra
mim, enquanto homens fedendo a tabaco me diziam que eu era gostosa ao pé do
ouvido entre um gemido e outro. Eles nunca me pagaram pelo livre uso da minha
pele, das minhas entranhas, das minhas células, e não apenas porque mamãe fazia
vista grossa, mas porque se eu cobrasse, me tornaria uma delas, e elas, minha
gente, não eram ninguém.
Eu
tinha medo do escuro porque às claras nada disso era evidente, nada disso era
estapeado em minhas fuças como a vida que havia pra mim. Às claras elas riam à
mesa, se emprestavam batom e consertavam suas roupas cantando músicas de sua
infância. No escuro, quando todos iam embora, o silêncio da casa se convertia
em sussurros baixinhos e orações por uma liberdade que jamais viria.
Éramos
todas escravas dos tempos.
Quando mamãe
morreu, por volta dos meus 15 anos, eu já havia me tornado uma delas.
E eu
nunca mais dormi de luz apagada.
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