sábado, 14 de abril de 2018

Eu tinha medo do escuro


Eu tinha medo do escuro.

                Pensava não nos monstros imaginários que as cantigas de ninar me diziam que viriam me atacar à noite, mas nas pessoas que não podiam ser combatidas com um simples “não” em uma singela voz infantil. Nas pessoas cujas negações teriam mais valor aos demais do que as lacerações no meu corpo.

                Eu tinha medo do escuro.

                No escuro os sons se misturavam e eu não sabia mais o que era o que. Eu não sabia se meu cedro de princesa não era a arma de um agressor. Eu não sabia se a respiração ofegante era a fuga do mundo lá fora entre as paredes do meu quarto ou mais um deles vindo se saciar sobre a minha pele.

                Do lado de fora sempre havia risos. Eu já conhecia aqueles risos forçados, eram exaustivamente ensaiados para que os frequentadores acreditassem que elas se divertiam com suas piadas sem graça e suas histórias inventadas sobre suas glórias na guerra.

                Eles não eram honrados como diziam, nenhum deles era exatamente um vencedor, alguns deles sequer foram de fato pra guerra. Todos aqueles anos assistindo as mulheres da casa sendo treinadas para mentir me deixaram um pouco mais esperta para as mentiras dos homens também. Elas sabiam que eles mentiam, mas precisavam deixa-los felizes, homens felizes pagavam os valores cobrados e não as machucavam tanto. Da última vez que um homem não gostou do riso forçado de uma delas, a noite terminou com um funeral.

                Entre vários deles, algumas delas se escondiam no meu quarto para ter um minuto pra chorar antes do próximo cliente. Eu não reconhecia suas vozes, todas elas pareciam iguais chorando e nenhuma jamais dirigiu a palavra a mim. Não as julgo, todas deviam parecer sempre felizes e chorar era um péssimo negócio.

                Mas alguns me descobriram apesar de eu me recolher sempre antes das 20h. São os mais antigos e ai de mim se eu ousar reclamar, como se possuir meu corpo fosse um bônus, um brinde para cliente VIP.

                Não era deles que eu tinha medo - embora fosse sempre extremamente doloroso quando qualquer deles entrava em meu quarto pela madrugada - meu maior medo é que outro dos monstros de carne e osso os visse entrando na única porta que nunca abria nas noites de serviço, e tivesse a ideia de descobrir o que tinha lá dentro. Tinha eu, pequena de camisola rendada, e eles adoravam isso.

                Os tempos naquela época eram difíceis pra todo mundo e a casa onde eu vivia era quase como um desvio de realidade pra esses homens. Lá sempre tinham mulheres bonitas rindo de suas piadas idiotas e elogiando suas performances fraquíssimas. Na vida real sua beleza era forjada por excesso de maquiagem e roupas remendadas enquanto por dentro choravam como as meninas desamparadas que sempre foram, enquanto eles tinham na simples capacidade de nos violar o único respiro à sua covardia forjada por balas e sede de sangue.

                Eram covardes. Sim, eram covardes. Um ou outro ostentava medalhas de lata por ter perdido um braço em uma explosão, ou ter impedido que um irmão morresse queimado. Mas eles sabiam que seu heroísmo era uma farsa e descontavam em nossos corpos. Nossos, inclusive no meu que não pertencia às noites de gala falida e doses de Martini barato.

                Eu tinha medo do escuro porque não importava o tamanho infantil do meu corpo, cada um que me descobria dentro daquele quarto fechado se sentia um explorador em frente ao tesouro. Entrar no meu quarto era contra as regras porque minha mãe não cobrava pelo meu corpo, mas também não fazia nada para impedir seu uso quando flagrava seus bons fregueses entrando pé ante pé na penumbra do cômodo.

                Eu não pertencia a mim mesma. Mamãe repetia isso com frequência às meninas que lá trabalhavam, para que não se sentissem tão violadas, afinal, como podiam se sentir violadas se o corpo delas não as pertenciam? Mamãe não era uma boa pessoa, mas era quem eu tinha na vida, junto à casa onde as meninas chegavam com medo e seguidamente saíam em macas com corpos cobertos por lençóis.

                Antes de meus seios se mostrarem em meu corpo magro de fome, já havia perdido a conta de quantas delas nos deixaram assim. E ninguém dava a mínima.

                Nem pra mim, enquanto homens fedendo a tabaco me diziam que eu era gostosa ao pé do ouvido entre um gemido e outro. Eles nunca me pagaram pelo livre uso da minha pele, das minhas entranhas, das minhas células, e não apenas porque mamãe fazia vista grossa, mas porque se eu cobrasse, me tornaria uma delas, e elas, minha gente, não eram ninguém.

                Eu tinha medo do escuro porque às claras nada disso era evidente, nada disso era estapeado em minhas fuças como a vida que havia pra mim. Às claras elas riam à mesa, se emprestavam batom e consertavam suas roupas cantando músicas de sua infância. No escuro, quando todos iam embora, o silêncio da casa se convertia em sussurros baixinhos e orações por uma liberdade que jamais viria.

                Éramos todas escravas dos tempos.

                Quando mamãe morreu, por volta dos meus 15 anos, eu já havia me tornado uma delas.
                E eu nunca mais dormi de luz apagada.