Já nascia o sol
no Planalto Central.
Eu permanecia
sentada no gramado onde estivera nas últimas duas horas. Luca já não estava
mais lá quando os primeiros raios de sol iluminavam os prédios que eu tanto via
na TV de forma a deixa-los ainda mais imponentes pelas sombras que produziam.
Eu nunca pensei que teria medo de um apanhado de concreto e vidraças, e no
entanto, eu tinha dificuldade de parar de tremer.
A quem vinha de
tão longe como eu, Brasília soava ameaçadora com seu ar seco e seus intermináveis
quarteirões. Lembro-me que ri quando pensei na ironia de chegar de avião em uma
cidade curiosamente no mesmo formato. Agora essa piada boba tinha perdido a
graça.
Eu não sabia
onde Luca estava. Não fazia a menor ideia de onde ele estaria nem há quanto
tempo não estava mais lá. Foi quando o sol me encontrou que eu finalmente
consegui chorar.
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- Taby, quando
você chegar, te levo na rodoviária!
Lembro de achar
que Luca tinha ficado louco, já que eu chegaria de avião. Foram uns 5 minutos
de explicações até eu entender que ele me levaria lá para comer pastel, e que
isso era um programa comum entre brasilienses.
Luca também não
era de lá; vivia na Ceilândia há pouco mais de um ano, vindo do interior do
Mato Grosso onde eu, gaúcha, o conheci numa viagem organizada pela minha
faculdade. Eu estava apaixonada por ele quando ele me convidou para uma noite
em Brasília. A princípio entendi que seria um encontro romântico, até descobrir
que a ideia dele era uma noite alucinada pelas ruas da capital federal.
Achei graça, um
pouco bobo por me lembrar os títulos dos filmes oitentistas da sessão da tarde,
mas eu não me importava com nada, eu só queria estar com Luca.
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Eu não me movia.
Via turistas se aproximando, pessoas arrumando piquenique enquanto o calor seco
de Brasília me feria as narinas. Eu me sentia suja, sabia que havia sangue seco
estampando minha pele quando pessoas estranhas se colocaram ao meu redor.
Ouvia números
soltos e letras que lembravam os estranhos nomes de ruas que Luca me contava;
lembro que ria disso porque, em todas as minhas andanças, jamais tinha
conhecido uma cidade com nomes tão estranhos.
Por mais que eu
não lembrasse bem o que tinha acontecido, mas sabia que a lembrança, assim que
voltasse, me machucaria muito porque eu tremia sem parar, e não era de frio. Eu
sentia que o medo tinha impregnado em meus ossos.
-
Onde... onde estou? – Gaguejei.
-
No Planalto Central, moça. Está tudo bem?
Sim,
eu sabia que estava lá, eu conseguia enxergar a rampa que eu sempre via na
televisão, mas não era essa minha pergunta.
-
Onde estou? – Repeti
-
Moça, você está no Planalto Central, acabei de lhe dizer.
-
Vocês... são reais? – Deviam ser umas 5 ou 6 pessoas, o sol ofuscava minha
visão enquanto eu lutava contra meu próprio corpo para me encolher o máximo
possível.
-
Moça, está tudo bem com você?
-
Que lugar é esse? – Eu ainda tremia.
Os
visitantes não gostaram, pareceram irritados, eu fiquei com medo do que eles
poderiam ser. Eles poderiam ser qualquer coisa, eu sabia que podiam, eu sabia
que era possível. Essas... coisas... existiam.
Quando
um deles pegou o celular para fazer uma ligação, gritei. E se não fosse um
celular? E se fosse alguma coisa que eu ainda era incapaz de reconhecer?
Corri.
Corri sem fazer ideia de pra onde ir.
E
Luca, onde estaria?
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-
Taby! – Ah, o sorriso de Luca, que saudade que eu tinha dele!
-
Luca! – Corri para o seu abraço.
- Não
tinha certeza se teria coragem depois do que eu te disse.
Sim,
ele tinha dito algo que eu não tinha ficado muito feliz. O que era? Meu Deus,
como era difícil lembrar das coisas agora! Luca, me ajude, o que foi que você
disse mesmo?
-
Imagina se eu desistiria de te ver por uma besteira, menino!
O que
era? O que era? Eu estava correndo sem parar no meio do Planalto Central,
morrendo de medo e suja de sangue. O que houve? O que era?
-
Bom, confesso que entenderia se tivesse mesmo desistido.
Uma
noite realmente louca onde tudo o que você conhece vai deixar de existir e todo
um mundo novo vai se abrir pra você. Era isso. Não parecia tão ruim. Por que
Luca achou que eu desistiria por isso?
- Não
seja bobo, Luca, teria que ser um motivo muito mais forte pra eu desistir de
vir. Você teria que ser um psicopata, por exemplo. – Rimos. Ele riu tão alto
que pensei que tivesse associado a algo que não exatamente o que eu disse, não
era tão engraçado assim.
Então
tinha mais coisa. Tinha que ter mais coisa.
-
Você sabe que eu não sou psicopata.
Tinha
mais coisa, eu sei que tinha.
- Por
isso que eu vim.
-
Você sabe que é muito pior que isso. – Ele sorriu. Eu derreti.
Claro
que tinha.
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Caía
a noite na capital federal e eu já mal sentia minhas pernas depois de um copo
de um troço chamado diabo verde – que na minha terra é nome de desentupidor de
privada! Andávamos feitos duas crianças pelos prédios não gradeados e eu sentia
um misto são grande de emoções que era como se eu não estivesse de fato lá.
E foi
entre os pilares de um desses prédios que Luca me beijou.
Lembro
de pensar que o mundo ao meu redor tinha simplesmente parado de girar, que nada
mais importava além de nós dois ali, meio invasores em um espaço residencial
onde não conhecíamos ninguém, onde poderíamos ser vistos como dois clandestinos
foras-da-lei que teriam que correr por sua vida e liberdade.
Poucas
vezes me senti mais viva, mais livre. Éramos dois corpos apaixonados numa
cidade que nos era estranha, porque mesmo que ele estivesse morando ali,
disse-me que pouco a conhecia e se perdia por meio de suas ruas codificadas.
Eu
carregava somente uma bolsa com algum dinheiro, documentos e um livro. Na
cintura o casaco e no peito uma paixão que parecia ser maior que eu.
Passaríamos a noite em claro, encontraríamos um cantinho pra fazer amor e eu
voltaria pra casa no dia seguinte plena, feliz e ainda mais apaixonada.
Aquele
beijo me fez acreditar em tudo isso.
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Eu
perdi completamente a noção das horas. Andava sozinha pelas ruas sem fazer a
menor ideia de pra onde ir. O calor já beirava o insuportável e meu corpo,
acostumado com a umidade do sul, cobrava o alto custo de estar numa terra tão
seca. Respirar doía com o inferno.
Brasília,
de forma geral, me parecia uma das cidades mais lindas que eu já tinha
visitado. Tinha observado isso no dia anterior quando Luca me pegou no
aeroporto e me levou direto pra rodoviária, mas eu tinha total consciência que
minha paixão por Luca podia ter influenciado minha visão.
Agora,
que a paixão, a serenidade e a leveza tinham sido substituídas pelo medo, pelos
lapsos de memória e pelas incertezas, eu ainda era capaz de ver beleza em seus
intermináveis quarteirões.
Eu só
queria encontrar um lugar seguro, mas agora já nem sabia se isso existia. As
pessoas me olhavam com curiosidade ou medo e eu não fazia a menor ideia de como
eu parecia pra elas. Eu pareceria humana ainda?
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Chegamos
em um lugar que me foi dito ser algo como comercial sul ou qualquer coisa do
tipo. Era cheio de bares e pelas ruas
mais escuras era possível contratar qualquer tipo de serviço... não
convencional, de sexo a homicídio. Minha calça jeans clara, meu tênis Coca-Cola
Shoes e minha regada rosa com rendinha contrastava de forma constrangedora com
as poucas mulheres que lá estavam – a maioria disputando clientela na calçada –
com suas roupas sedutoras e maquiagens pesadas.
Luca
riu do meu susto enquanto me puxava para dentro de um bar com gente que eu só
sabia que existia por filmes, com um visual que eu nunca tinha visto ao vivo. A
música que tocava era tão pesada quanto o ambiente, completamente tomado de
fumaça de cigarro e maconha.
Ele
me ofereceu cerveja, não quis. Eu queria ir embora, voltar praquela região com
os prédios abertos, voltar à sensação de liberdade ilusória que só agora eu me
dava conta que poderia ter sido tirada dos muitos romances que li. Eu estava
com medo daquele lugar e da maneira como Luca estava se comportando naquele momento.
-
Luca, eu queria ficar sozinha com você... – falei com a voz falhando, tentando
não transparecer que o ambiente não me agradava em nada.
-
Taby, estamos sozinhos, ninguém aqui liga pra gente, se quiser dá até pra gente
transar aqui mesmo que ninguém vai fazer nada a respeito. Olhe ao seu redor!
Olhei.
Realmente, as pessoas pareciam em transe.
-
Mesmo assim, Luca, a música é muito pesada, quase não dá pra respirar aqui
dentro e... – Luca me agarrou pelo cabelo e me fez ver estrelas.
- A
gente vai ficar aqui, ok?
-
Tudo bem, tudo bem! – Respondi quase chorando.
Quando
ele soltou meu cabelo é que notei, pela fraca luz do caixa do bar, que seu
rosto não era mais o mesmo. Talvez o horror tivesse se estampado no meu rosto,
ou talvez aquilo que ele era – definitivamente não era humano – tinha o poder
de telepatia.
- Eu
te falei que seria uma noite alucinada. – Disse ele rindo.
- O
que... você... é?
- O
que você acha que eu sou?
Ele
falava com muita calma na voz, estive perto de ficar tranquila se não notasse
que eu provavelmente era a única... humana?
- Eu
não sei... eu nunca tive contato com nada místico ou coisa do tipo. – Ele me
interrompeu com uma risada.
-
Místico? Taby, você é uma criaturinha graciosa!
Foi
então que ouvi um grito mais ao fundo do bar. E eu faria de tudo pra não ter
olhado.
Um
olhar de horror e dor alcançou meus olhos e uma súplica por socorro
completamente inaudível escapou pelos lábios de uma moça que não devia ser mais
velha que eu. Jatos de sangue saltavam para todos os lados enquanto um fio
vermelho e viscoso escorria pelos lábios abertos em expressão de pânico.
Ao
seu redor, três homens literalmente a devoravam viva. Arrancavam com os dentes
os pedaços de tecido que se colocavam entre sua boca a e pele dela, mastigando
avidamente pedaços inteiros de seus braços, seios e tronco. Um terceiro homem
lhe arrancou as calças de couro e passou a comer-lhe as pernas.
Ela
estava em choque, não tardaria a perder a consciência cercada por um rio de
sangue e dentes a arrancar pedaços de sua carne sem dó. Foi então que um deles
lhe mordeu o pescoço e um jato de sangue manchou as paredes ao seu redor. Seu
grito de dor se calou.
Fiquei
paralisada observando a cena sem conseguir esboçar nenhuma reação. Outros
daqueles seres que antes me pareciam homens cercaram o agora cadáver da menina
e se afastaram somente quando restava-lhe somente o esqueleto banhado por uma
imensa poça de sangue.
Luca
era um deles.
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Encontrei
um jardim com plantas altas e me encolhi ali. Eu deveria perguntar as horas,
tentar ligar para alguém, qualquer coisa para que eu pudesse sair o mais rápido
possível daquele lugar. Estava agora sem qualquer pertence, sem dinheiro,
documento, telefone, nada. Sendo mais exata, o “nada” incluía minha própria
identidade porque tudo o que eu lembrava de mim mesma é que meu nome era
Tábata, e somente porque Luca, nas lembranças, me chamava da “Taby”.
Eu
assistir uma moça da minha idade ser literalmente devorada. Ela demorou para morrer.
Ela sentiu várias das mordidas que lhe arrancavam pedaços expressivos do corpo.
Ela sabia que iria morrer e sentiu muita dor. E olhou fixamente pra mim. Eu
jamais saberei se ela me olhou fixamente esperando socorro ou se como um aviso
para que eu saísse correndo de lá. Eu jamais me perdoaria por não ter feito
absolutamente nada porque o medo me paralisou.
O
gramado recém aparado e as folhas dos arbustos me agrediam a pele exposta, mas
o medo das lembranças que ainda restavam da noite era tão mais forte que eu
podia estar sendo fincada por uma agulha que ignoraria a dor.
Eu
sabia que lembraria de tudo.
E eu
sabia que a resposta da ausência de Luca viria.
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-
Eles COMERAM ela! – Gritei em choque olhando para Luca, que observava o
esqueleto no chão com expressão de desejo.
-
Cadeia alimentar, Taby.
-
COMO ASSIM?
Ele
riu.
- O
leão come a gazela. Cadeia alimentar.
-
Não, Luca! Leões comem gazelas, mas não comem outros leões, aquilo ali foi
seres humanos comendo outro ser humano!
-
Taby, eu sei que está escuro, mas você já notou que eu não sou o mesmo Luca de
uma hora atrás. Também já notou que eles também não são iguais a você. Não é
leão comendo leão, é leão comendo gazela.
A
gazela era ela. A gazela era eu. O bar estava lotado, eu não estava
suficientemente perto da porta, eles eram maiores que eu. Eu iria morrer.
-
Você vai me comer? – Perguntei, desanimada.
- Não
era isso que você queria quando gastou suas economias só pra vir me ver? – Ele
gargalhou com o próprio trocadilho, eu não achei graça.
Foi
quando eu senti uma mordida no meu ombro. Ia começar.
Luca,
até então sentado num banco do bar, não gostou da invasão e se levantou,
irritado. O homem – ou seja lá o que era aquilo – riu, mastigando o pedaço do
meu ombro que ele tinha acabado de arrancar. Meu ombro, ferido, doía com o
inferno. E o inferno era exatamente onde eu estava. Mas eu não tinha tempo pra
sentir dor, eu precisava pensar rápido ou em minutos o esqueleto banhado em
sangue seria eu.
- Ela
é minha. – Falou Luca.
-
Aqui a gente divide refeição, irmão. – Respondeu o homem, depois de engolir o
pedaço do meu ombro.
- Eu
não comi as suas garotas, parça, eu trouxe essa pra mim. Já tirou tua
lasquinha, agora sai fora. – Disse Luca se aproximando do homem. Pro meu azar
eu fiquei do lado errado da briga, pra correr pro lado de fora do bar eu iria
precisar passar por eles.
Fui
me afastando tanto quando deu enquanto outros “coisas” me tocavam, um chegou a
lamber a ferida fazendo meu estômago revirar.
Luca não gostou. Quando vi havia uma briga gigante acontecendo no bar e
eu estava no fundo, completamente acuada. Foi quando uma ideia me passou pela
cabeça: era matar ou morrer.
Me
arrastando pelas paredes, cheguei ao balcão onde, sem ser vista pelo barmen,
peguei uma faca. Era grande o bastante para o meu plano e, com ela na mão,
corri em direção à porta balançando ela na minha frente e enfrentando o banho
de sangue dos ferimentos que eu causava em quem estivesse na minha frente.
Cheguei
na porta do bar com sangue escorrendo pelos cabelos e dor, muita dor. Eu não
fazia ideia dos ferimentos que carregava, mas sabia que tinha sido mordida por
vários no caminho pra porta. Luca me alcançou, estava ferido mas não pela faca
que eu usava. Com um olhar sereno e parecendo o Luca que eu amava, me chamou.
-
Taby! Onde você está indo? Você não conhece nada! Você está banhada de sangue!
Eu
continuei correndo pra longe do bar, com a faca oculta pelo casaco ainda
amarrado na cintura, e ele correndo atrás de mim.
-
Taby, meu bem! Não fuja! Você vai se perder! Sua bolsa ficou lá dentro,
precisamos voltar!
Parei,
as dores das mordidas me venceram. Encostada em uma parede escura, Luca me
alcançou.
-
Poxa, Taby, eu sinto tanto... – Ele me abraçou. Eu não estava paralisada, eu
tinha um plano. Eu senti o bafo quente quando ele abriu a boca para me morder.
Sem ele notar, tirei a faca da cintura e a enterrei por completo em sua
barriga, interrompendo a mordida por um grito de dor.
Sem
esperar por mais nada, pulei por cima do corpo ainda vivo de Luca e corri.
Corri como nunca, chegando ao gramado do Planalto Centro duas horas antes de
nascer o sol.
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Eu
sentia a febre arder em meu corpo enquanto misturava o frio da luta contra
infecções generalizadas e o calor do meio dia sob o sol escaldante de Brasília.
Deitada sob os arbustos de um jardim qualquer, senti que minhas chances eram
mínimas porque eu tinha feridas abertas por todo o corpo, feridas feitas por
bocas com bactérias. Muitas, eu realmente não sabia precisar, mas sabia que meu
corpo não aguentaria muito tempo.
Fechei
os olhos e pensei no Luca. No meu Luca, naquele que me beijou tão antes de
virar o que virou, que eu jamais saberei o que era.
Como
num sonho bom, mergulhei nos lábios do homem que eu amava e me deixei flutuar.
Encolhida naquele jardim, eu sabia que nunca mais deixaria Brasília.