sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ah, meu amor!

Eu cruzei mais do que oceanos para te encontrar. Eu cruzei vidas.

Das lágrimas que te fiz derramar no passado, transformei nos metros que me propus a atravessar entre dimensões para poder enfim estar ao teu lado. Eu enfrentaria o mundo outra vez pela chance de ver, mesmo que de longe, teus lábios no formato de um sorriso.

Ah, meu amor...

Dos séculos que cruzamos entre olhares, beijos e desencontros, sinto-me como parte de ti como se jamais houvesse o destino nos separado. Nada mais puro do que um amor que se propõe eterno dentro do que a própria eternidade nos permite.

Ah, meu amor...

Intactos ficarão meus desejos de te amar e de estar ao teu lado mesmo que a própria vida encontre seu fim, para que então possamos ser um só como nem as vidas e mortes foram capazes de tirar de nós, porque duas metades cedo ou tarde se encontram.

Então, meu amor...

Perdoo tua insolência de recusar meus braços, meu corpo e minha alma enquanto ainda não tens condições de me perdoar pelas dores que te causei acreditando ser o melhor pra ti, porque nem nessa, nem em outras existências eu seria capaz de ter ferir se a minha humanidade não tivesse sido suficientemente tola para permitir tua dor.

Já nem me importam mais quantas existências teremos a compartilhar, te amarei em todas elas com a mesma força com que te amo a cada amanhecer, a cada vez que teu sorriso me toma a mente e eu me lembro que o destino mais uma vez nos colocou no caminho um do outro.

Nada pode separar o que foi feito para ser eterno.


sábado, 22 de outubro de 2016

MEMÓRIAS DO VASO DA SALA

Nasci cerâmica. Não qualquer cerâmica. Coisa fina, com motivos orientais, branco perolado com detalhes em ouro falso. Sim, falso, né, quem tem dinheiro pra colocar na sala um vaso breguíssimo de ouro de verdade?
Mas enfim. Meu lugar era ali no anexo da entrada, junto ao... ao... àquele móvel com um espelho que tem um nome fresco e que o dono da casa usa pra ajeitar aquela gravata borboleta ridícula.
Ficava ali parado, com um monte de folha seca e flor de borracha dentro. Acho ótimo, pela atenção que me davam em um mês eu deixava de ser vaso pra ser túmulo.
Bom mesmo era quando vinha visita. Uma ou outra me achava gatão, comentava a delicadeza de meus traços e o talento de quem pintou os desenhos, sem saber que era uma estampa pré-pronta registrada com spray lá da 25. Família rica sim. No facebook, porque na vida real o IPTU tava atrasado que eu sei.
O fato é que o imbecil do filho desse pobre metido à elite com a gravata borboleta resolveu jogar futebol dentro daquele apartamento pouco maior que um ovo e é óbvio que quem tomou no cu fui eu.
Lá foi ele com a cola bastão que ele usa pra fazer mural de mulher pelada na pocilga que ele chama de quarto e foi juntando os pedaços. Por óbvio aquela anta bípede não entende os minimalismos dos detalhes da minha estampa e me transformou numa obra póstuma do Picasso, só que sem o talento do artista.
Tava lá eu, virado numa releitura de Frank, o Stein, e minha flores de borracha.
Aproveitei que o único talento do pirralho é encher o saco e me impulsionei por entre as falhas da colagem.
Virei picadinho.
Jogado no lixo, como todo bom vaso vagabundo, fui diluindo com a chuva e virando água suja pelas ruas da cidade. Pelo menos a pintura de ouro simulado saiu de mim pra sempre. Água suja sim, brega jamais.
Hoje, quebrado, diluído, enlameado, me sinto alma livre. Não sou vaso, não sou nada. Sou corrente.




terça-feira, 4 de outubro de 2016

A noite

Já nascia o sol no Planalto Central.
Eu permanecia sentada no gramado onde estivera nas últimas duas horas. Luca já não estava mais lá quando os primeiros raios de sol iluminavam os prédios que eu tanto via na TV de forma a deixa-los ainda mais imponentes pelas sombras que produziam. Eu nunca pensei que teria medo de um apanhado de concreto e vidraças, e no entanto, eu tinha dificuldade de parar de tremer.
A quem vinha de tão longe como eu, Brasília soava ameaçadora com seu ar seco e seus intermináveis quarteirões. Lembro-me que ri quando pensei na ironia de chegar de avião em uma cidade curiosamente no mesmo formato. Agora essa piada boba tinha perdido a graça.
Eu não sabia onde Luca estava. Não fazia a menor ideia de onde ele estaria nem há quanto tempo não estava mais lá. Foi quando o sol me encontrou que eu finalmente consegui chorar.
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- Taby, quando você chegar, te levo na rodoviária!
Lembro de achar que Luca tinha ficado louco, já que eu chegaria de avião. Foram uns 5 minutos de explicações até eu entender que ele me levaria lá para comer pastel, e que isso era um programa comum entre brasilienses.
Luca também não era de lá; vivia na Ceilândia há pouco mais de um ano, vindo do interior do Mato Grosso onde eu, gaúcha, o conheci numa viagem organizada pela minha faculdade. Eu estava apaixonada por ele quando ele me convidou para uma noite em Brasília. A princípio entendi que seria um encontro romântico, até descobrir que a ideia dele era uma noite alucinada pelas ruas da capital federal.
Achei graça, um pouco bobo por me lembrar os títulos dos filmes oitentistas da sessão da tarde, mas eu não me importava com nada, eu só queria estar com Luca.
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Eu não me movia. Via turistas se aproximando, pessoas arrumando piquenique enquanto o calor seco de Brasília me feria as narinas. Eu me sentia suja, sabia que havia sangue seco estampando minha pele quando pessoas estranhas se colocaram ao meu redor.
Ouvia números soltos e letras que lembravam os estranhos nomes de ruas que Luca me contava; lembro que ria disso porque, em todas as minhas andanças, jamais tinha conhecido uma cidade com nomes tão estranhos.
Por mais que eu não lembrasse bem o que tinha acontecido, mas sabia que a lembrança, assim que voltasse, me machucaria muito porque eu tremia sem parar, e não era de frio. Eu sentia que o medo tinha impregnado em meus ossos.
            - Onde... onde estou? – Gaguejei.
            - No Planalto Central, moça. Está tudo bem?
            Sim, eu sabia que estava lá, eu conseguia enxergar a rampa que eu sempre via na televisão, mas não era essa minha pergunta.
            - Onde estou? – Repeti
            - Moça, você está no Planalto Central, acabei de lhe dizer.
            - Vocês... são reais? – Deviam ser umas 5 ou 6 pessoas, o sol ofuscava minha visão enquanto eu lutava contra meu próprio corpo para me encolher o máximo possível.
            - Moça, está tudo bem com você?
            - Que lugar é esse? – Eu ainda tremia.
            Os visitantes não gostaram, pareceram irritados, eu fiquei com medo do que eles poderiam ser. Eles poderiam ser qualquer coisa, eu sabia que podiam, eu sabia que era possível. Essas... coisas... existiam.
            Quando um deles pegou o celular para fazer uma ligação, gritei. E se não fosse um celular? E se fosse alguma coisa que eu ainda era incapaz de reconhecer?
            Corri. Corri sem fazer ideia de pra onde ir.
            E Luca, onde estaria?
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            - Taby! – Ah, o sorriso de Luca, que saudade que eu tinha dele!
            - Luca! – Corri para o seu abraço.
            - Não tinha certeza se teria coragem depois do que eu te disse.
            Sim, ele tinha dito algo que eu não tinha ficado muito feliz. O que era? Meu Deus, como era difícil lembrar das coisas agora! Luca, me ajude, o que foi que você disse mesmo?
            - Imagina se eu desistiria de te ver por uma besteira, menino!
            O que era? O que era? Eu estava correndo sem parar no meio do Planalto Central, morrendo de medo e suja de sangue. O que houve? O que era?
            - Bom, confesso que entenderia se tivesse mesmo desistido.
            Uma noite realmente louca onde tudo o que você conhece vai deixar de existir e todo um mundo novo vai se abrir pra você. Era isso. Não parecia tão ruim. Por que Luca achou que eu desistiria por isso?
            - Não seja bobo, Luca, teria que ser um motivo muito mais forte pra eu desistir de vir. Você teria que ser um psicopata, por exemplo. – Rimos. Ele riu tão alto que pensei que tivesse associado a algo que não exatamente o que eu disse, não era tão engraçado assim.
            Então tinha mais coisa. Tinha que ter mais coisa.
            - Você sabe que eu não sou psicopata.
            Tinha mais coisa, eu sei que tinha.
            - Por isso que eu vim.
            - Você sabe que é muito pior que isso. – Ele sorriu. Eu derreti.
            Claro que tinha.
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            Caía a noite na capital federal e eu já mal sentia minhas pernas depois de um copo de um troço chamado diabo verde – que na minha terra é nome de desentupidor de privada! Andávamos feitos duas crianças pelos prédios não gradeados e eu sentia um misto são grande de emoções que era como se eu não estivesse de fato lá.
            E foi entre os pilares de um desses prédios que Luca me beijou.
            Lembro de pensar que o mundo ao meu redor tinha simplesmente parado de girar, que nada mais importava além de nós dois ali, meio invasores em um espaço residencial onde não conhecíamos ninguém, onde poderíamos ser vistos como dois clandestinos foras-da-lei que teriam que correr por sua vida e liberdade.
            Poucas vezes me senti mais viva, mais livre. Éramos dois corpos apaixonados numa cidade que nos era estranha, porque mesmo que ele estivesse morando ali, disse-me que pouco a conhecia e se perdia por meio de suas ruas codificadas.
            Eu carregava somente uma bolsa com algum dinheiro, documentos e um livro. Na cintura o casaco e no peito uma paixão que parecia ser maior que eu. Passaríamos a noite em claro, encontraríamos um cantinho pra fazer amor e eu voltaria pra casa no dia seguinte plena, feliz e ainda mais apaixonada.
            Aquele beijo me fez acreditar em tudo isso.
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            Eu perdi completamente a noção das horas. Andava sozinha pelas ruas sem fazer a menor ideia de pra onde ir. O calor já beirava o insuportável e meu corpo, acostumado com a umidade do sul, cobrava o alto custo de estar numa terra tão seca. Respirar doía com o inferno.
            Brasília, de forma geral, me parecia uma das cidades mais lindas que eu já tinha visitado. Tinha observado isso no dia anterior quando Luca me pegou no aeroporto e me levou direto pra rodoviária, mas eu tinha total consciência que minha paixão por Luca podia ter influenciado minha visão.
            Agora, que a paixão, a serenidade e a leveza tinham sido substituídas pelo medo, pelos lapsos de memória e pelas incertezas, eu ainda era capaz de ver beleza em seus intermináveis quarteirões.
            Eu só queria encontrar um lugar seguro, mas agora já nem sabia se isso existia. As pessoas me olhavam com curiosidade ou medo e eu não fazia a menor ideia de como eu parecia pra elas. Eu pareceria humana ainda?
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            Chegamos em um lugar que me foi dito ser algo como comercial sul ou qualquer coisa do tipo. Era cheio de bares  e pelas ruas mais escuras era possível contratar qualquer tipo de serviço... não convencional, de sexo a homicídio. Minha calça jeans clara, meu tênis Coca-Cola Shoes e minha regada rosa com rendinha contrastava de forma constrangedora com as poucas mulheres que lá estavam – a maioria disputando clientela na calçada – com suas roupas sedutoras e maquiagens pesadas.
            Luca riu do meu susto enquanto me puxava para dentro de um bar com gente que eu só sabia que existia por filmes, com um visual que eu nunca tinha visto ao vivo. A música que tocava era tão pesada quanto o ambiente, completamente tomado de fumaça de cigarro e maconha.
            Ele me ofereceu cerveja, não quis. Eu queria ir embora, voltar praquela região com os prédios abertos, voltar à sensação de liberdade ilusória que só agora eu me dava conta que poderia ter sido tirada dos muitos romances que li. Eu estava com medo daquele lugar e da maneira como Luca estava se comportando naquele momento.
            - Luca, eu queria ficar sozinha com você... – falei com a voz falhando, tentando não transparecer que o ambiente não me agradava em nada.
            - Taby, estamos sozinhos, ninguém aqui liga pra gente, se quiser dá até pra gente transar aqui mesmo que ninguém vai fazer nada a respeito. Olhe ao seu redor!
            Olhei. Realmente, as pessoas pareciam em transe.
            - Mesmo assim, Luca, a música é muito pesada, quase não dá pra respirar aqui dentro e... – Luca me agarrou pelo cabelo e me fez ver estrelas.
            - A gente vai ficar aqui, ok?
            - Tudo bem, tudo bem! – Respondi quase chorando.
            Quando ele soltou meu cabelo é que notei, pela fraca luz do caixa do bar, que seu rosto não era mais o mesmo. Talvez o horror tivesse se estampado no meu rosto, ou talvez aquilo que ele era – definitivamente não era humano – tinha o poder de telepatia.
            - Eu te falei que seria uma noite alucinada. – Disse ele rindo.
            - O que... você... é?
            - O que você acha que eu sou?
            Ele falava com muita calma na voz, estive perto de ficar tranquila se não notasse que eu provavelmente era a única... humana?
            - Eu não sei... eu nunca tive contato com nada místico ou coisa do tipo. – Ele me interrompeu com uma risada.
            - Místico? Taby, você é uma criaturinha graciosa!
            Foi então que ouvi um grito mais ao fundo do bar. E eu faria de tudo pra não ter olhado.
            Um olhar de horror e dor alcançou meus olhos e uma súplica por socorro completamente inaudível escapou pelos lábios de uma moça que não devia ser mais velha que eu. Jatos de sangue saltavam para todos os lados enquanto um fio vermelho e viscoso escorria pelos lábios abertos em expressão de pânico.
            Ao seu redor, três homens literalmente a devoravam viva. Arrancavam com os dentes os pedaços de tecido que se colocavam entre sua boca a e pele dela, mastigando avidamente pedaços inteiros de seus braços, seios e tronco. Um terceiro homem lhe arrancou as calças de couro e passou a comer-lhe as pernas.
            Ela estava em choque, não tardaria a perder a consciência cercada por um rio de sangue e dentes a arrancar pedaços de sua carne sem dó. Foi então que um deles lhe mordeu o pescoço e um jato de sangue manchou as paredes ao seu redor. Seu grito de dor se calou.
            Fiquei paralisada observando a cena sem conseguir esboçar nenhuma reação. Outros daqueles seres que antes me pareciam homens cercaram o agora cadáver da menina e se afastaram somente quando restava-lhe somente o esqueleto banhado por uma imensa poça de sangue.
            Luca era um deles.
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            Encontrei um jardim com plantas altas e me encolhi ali. Eu deveria perguntar as horas, tentar ligar para alguém, qualquer coisa para que eu pudesse sair o mais rápido possível daquele lugar. Estava agora sem qualquer pertence, sem dinheiro, documento, telefone, nada. Sendo mais exata, o “nada” incluía minha própria identidade porque tudo o que eu lembrava de mim mesma é que meu nome era Tábata, e somente porque Luca, nas lembranças, me chamava da “Taby”.
            Eu assistir uma moça da minha idade ser literalmente devorada. Ela demorou para morrer. Ela sentiu várias das mordidas que lhe arrancavam pedaços expressivos do corpo. Ela sabia que iria morrer e sentiu muita dor. E olhou fixamente pra mim. Eu jamais saberei se ela me olhou fixamente esperando socorro ou se como um aviso para que eu saísse correndo de lá. Eu jamais me perdoaria por não ter feito absolutamente nada porque o medo me paralisou.
            O gramado recém aparado e as folhas dos arbustos me agrediam a pele exposta, mas o medo das lembranças que ainda restavam da noite era tão mais forte que eu podia estar sendo fincada por uma agulha que ignoraria a dor.
            Eu sabia que lembraria de tudo.
            E eu sabia que a resposta da ausência de Luca viria.
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            - Eles COMERAM ela! – Gritei em choque olhando para Luca, que observava o esqueleto no chão com expressão de desejo.
            - Cadeia alimentar, Taby.
            - COMO ASSIM?
            Ele riu.
            - O leão come a gazela. Cadeia alimentar.
            - Não, Luca! Leões comem gazelas, mas não comem outros leões, aquilo ali foi seres humanos comendo outro ser humano!
            - Taby, eu sei que está escuro, mas você já notou que eu não sou o mesmo Luca de uma hora atrás. Também já notou que eles também não são iguais a você. Não é leão comendo leão, é leão comendo gazela.
            A gazela era ela. A gazela era eu. O bar estava lotado, eu não estava suficientemente perto da porta, eles eram maiores que eu. Eu iria morrer.
            - Você vai me comer? – Perguntei, desanimada.
            - Não era isso que você queria quando gastou suas economias só pra vir me ver? – Ele gargalhou com o próprio trocadilho, eu não achei graça.
            Foi quando eu senti uma mordida no meu ombro. Ia começar.
            Luca, até então sentado num banco do bar, não gostou da invasão e se levantou, irritado. O homem – ou seja lá o que era aquilo – riu, mastigando o pedaço do meu ombro que ele tinha acabado de arrancar. Meu ombro, ferido, doía com o inferno. E o inferno era exatamente onde eu estava. Mas eu não tinha tempo pra sentir dor, eu precisava pensar rápido ou em minutos o esqueleto banhado em sangue seria eu.
            - Ela é minha. – Falou Luca.
            - Aqui a gente divide refeição, irmão. – Respondeu o homem, depois de engolir o pedaço do meu ombro.
            - Eu não comi as suas garotas, parça, eu trouxe essa pra mim. Já tirou tua lasquinha, agora sai fora. – Disse Luca se aproximando do homem. Pro meu azar eu fiquei do lado errado da briga, pra correr pro lado de fora do bar eu iria precisar passar por eles.
            Fui me afastando tanto quando deu enquanto outros “coisas” me tocavam, um chegou a lamber a ferida fazendo meu estômago revirar.  Luca não gostou. Quando vi havia uma briga gigante acontecendo no bar e eu estava no fundo, completamente acuada. Foi quando uma ideia me passou pela cabeça: era matar ou morrer.
            Me arrastando pelas paredes, cheguei ao balcão onde, sem ser vista pelo barmen, peguei uma faca. Era grande o bastante para o meu plano e, com ela na mão, corri em direção à porta balançando ela na minha frente e enfrentando o banho de sangue dos ferimentos que eu causava em quem estivesse na minha frente.
            Cheguei na porta do bar com sangue escorrendo pelos cabelos e dor, muita dor. Eu não fazia ideia dos ferimentos que carregava, mas sabia que tinha sido mordida por vários no caminho pra porta. Luca me alcançou, estava ferido mas não pela faca que eu usava. Com um olhar sereno e parecendo o Luca que eu amava, me chamou.
            - Taby! Onde você está indo? Você não conhece nada! Você está banhada de sangue!
            Eu continuei correndo pra longe do bar, com a faca oculta pelo casaco ainda amarrado na cintura, e ele correndo atrás de mim.
            - Taby, meu bem! Não fuja! Você vai se perder! Sua bolsa ficou lá dentro, precisamos voltar!
            Parei, as dores das mordidas me venceram. Encostada em uma parede escura, Luca me alcançou.
            - Poxa, Taby, eu sinto tanto... – Ele me abraçou. Eu não estava paralisada, eu tinha um plano. Eu senti o bafo quente quando ele abriu a boca para me morder. Sem ele notar, tirei a faca da cintura e a enterrei por completo em sua barriga, interrompendo a mordida por um grito de dor.
            Sem esperar por mais nada, pulei por cima do corpo ainda vivo de Luca e corri. Corri como nunca, chegando ao gramado do Planalto Centro duas horas antes de nascer o sol.
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            Eu sentia a febre arder em meu corpo enquanto misturava o frio da luta contra infecções generalizadas e o calor do meio dia sob o sol escaldante de Brasília. Deitada sob os arbustos de um jardim qualquer, senti que minhas chances eram mínimas porque eu tinha feridas abertas por todo o corpo, feridas feitas por bocas com bactérias. Muitas, eu realmente não sabia precisar, mas sabia que meu corpo não aguentaria muito tempo.
            Fechei os olhos e pensei no Luca. No meu Luca, naquele que me beijou tão antes de virar o que virou, que eu jamais saberei o que era.
            Como num sonho bom, mergulhei nos lábios do homem que eu amava e me deixei flutuar. Encolhida naquele jardim, eu sabia que nunca mais deixaria Brasília.