Conto publicado em antologia - 2014.
Era uma vida pacata naquela cidade
de interior, com pouco mais de 20 mil habitantes. O inverno chegava com a força
de um furacão quando Luciana, se recuperando de uma pneumonia, pôde enfim
deixar seu apartamento. Arrependeu-se tão logo pôs os pés para fora.
-Droga! - Exclamou ao sentir seus
ossos doerem com o vento frio que fazia no prédio onde desejava
desesperadamente jamais ter se mudado. Em Linha Norte, a pequena cidade, as
melhores edificações ficavam para os ricos da capital. A cidade era basicamente
turística por causa dos vales congelados que a cercavam. Os hotéis exalavam
luxo, as casas dos "forasteiros" pareciam tiradas do cinema. Para a
população, restavam os prédios velhos de um tempo em que o glamour não atravessava
a velha estrada de chão.
Não havia muitos empregos. Trabalhava-se
nos hotéis, restaurantes ou no precário comércio de "iguarias locais"
(estrategicamente inventadas para “empurrar bugiganga” aos turistas). Quem não
quisesse atuar no turismo e não tivesse costas quentes na prefeitura, não tinha
opção a não ser buscar emprego nas cidades vizinhas. Foi quase isso que Luciana
fez.
Fez questão de sair daquela
hipocrisia disfarçada de civilização. Não se dava bem com vizinhos e já tinha
fama de barraqueira por colar cartazes na entrada da prefeitura pedindo um
hospital no lugar de um hotel. As pessoas a olhavam torto, e ela não hesitava
em chamá-las da primeira palavra que a viesse à boca. Foi assim que acabou
conseguindo um emprego em um posto de gasolina pouco antes da entrada da
cidade; porque na própria, ela jamais conseguiria.
- Melhorou, Luciana? - Perguntou o
"velho tarado", um senhor aposentado que ficava sentado na frente do
prédio cantando as meninas que passassem. Mesmo no inverno, que, de tão
rigoroso às vezes era difícil discernir se era um homem ou uma mulher. Luciana
grunhiu, e - no alto de seu azedume – desejou ter passado sua pneumonia para o
velho. - Vai responder não, menina mal educada?
- Fica na tua, e não olha minha
bunda. - Falou já procurando a chave do carro dentro da bolsa.
- Ê mocinha invocada. Se preocupa
não, já olhei aí atrás e tem nada de bom pra ficar olhando. - O velho riu com
seus escassos dentes na boca. Luciana tinha vontade fazê-lo perder esses poucos
que restavam com um golpe só. Não podia, tinha ataques de fúria mas jamais
machucara alguém.
Antes de entrar no carro - caindo
aos pedaços - se deu conta que tudo parecia mais calmo do que o normal. Calmo
demais. Pelos seus cálculos e o frio que fazia, deveria ter recém começado a temporada
de invasão dos turistas. Contrariada, olhou para trás.
- Ô velho, que calmaria é essa?
- "Cê" ouviu não o que
houve?
- Se eu não sei o motivo da
calmaria, é óbvio que eu não ouvi o que houve. - Falou grosseiramente.
- Descobre sozinha, garotinha
petulante. - O velho bufou e virou o rosto. Luciana estava na dúvida se o
pegava pelo colarinho puído da camisa e o forçava a falar ou ficava satisfeita
em não olhar mais seu sorriso que lhe provocava nojo. Entrou no carro e partiu.
No seu caminho para o posto, passava
pelo centro e suas lojinhas decoradas como uma cidade medieval. Nessas horas
lamentava viver no hemisfério sul - as lojinhas ficariam mais bonitinhas se
tivesse uma decoração de Natal para acompanhar o frio e a eventual neve. Foi
então que as coisas ficaram ainda mais estranhas; o centro parecia uma cidade
fantasma.
Estacionou na frente de uma banca de
revistas – da qual em dias normais não conseguiria estacionar nada mais perto
do que uns 5 quarteirões - e viu que os jornais expostos tinham mais de 3 dias.
- "Mas que droga é essa?". Na capa do jornal a manchete:
VÍRUS MISTERIOSO É ALVO DE ESTUDO
DE CIENTISTAS DO MUNDO TODO E DEVASTA CIDADES INTEIRAS.
Olhou
ao redor, procurando alguém para pagar pelo jornal velho, embora achasse um
absurdo um jornal de dias atrás. Não havia ninguém. Não havia ninguém em nenhum
lugar. Jogou o jornal no banco do carona ao sentar em seu acento, ainda
tremendo de frio, e louca por um café bem quente. Consultou o relógio de pulso,
tinha tempo até sua entrada no serviço depois de 15 dias de atestado. Com o
trânsito inexistente, daria até para comer alguma coisa.
Daria.
Se tivesse alguém em algum lugar.
-
Mas que porra é essa? - Gritou, dentro de um café às moscas. Literalmente às
moscas, várias delas voavam sobre pratos com restos de comida e o cheiro era
insuportável. Com o aquecimento do local, os insetos não morreram congelados, e
faziam um barulho perturbador.
Luciana
estava incrédula, impedida de enxergar que algo muito errado havia acontecido
pelo tamanho do seu mau humor. Achava um absurdo, ao julgar que o tal vírus era
o que ela mesma tivera naquelas duas semanas. - "Bando de frescos
vadios" - Grunhiu, ignorando que ela mesma ficara sem sair da cama.
Voltou
à lata velha, ligou o motor e seguiu cantando pneu e ignorando sinalizações de
trânsito. Foi então que atingiu algo.
-
Maravilha. A cidade vazia e um animal conseguiu ser atropelado por mim.
Imbecil! - Gritava, socando o volante. Tirou o celular da bolsa, pensando em
ligar para a polícia, mas não havia sinal. - Vou ter que congelar de novo será?
Buzinou,
colocou a cabeça para fora da janela e gritou.
-
Ei, você está bem?
Não
houve resposta. Buzinou outra vez, e outra, e tantas vezes que se não tivesse
matado sua vitima, no mínimo a teria deixado surda. O barulho foi tanto, somado
aos próprios gritos de Luciana exigindo uma resposta da vítima que acabou por
não ouvir gemidos que vinham de todos os lados. Antes que pudesse perceber,
Luciana estava cercada.
Ao
seu redor eram humanos. Eram, assim mesmo, no passado. Naquele momento já não
eram mais tão humanos assim. Reconheceu, por trás de olhos vazios, bocas
abertas, peles pálidas e enrugadas e ferimentos de todos os tipos, alguns
velhos conhecidos da cidade. O próprio dono da banca de revistas estava entre
eles, arrastando-se na sua direção como se fosse dominado por alguma força
demoníaca. O cheiro que pairava no ar era de putrefação. Estavam mortos.
Estavam todos mortos.
-
O que vocês querem? Saiam, seus imprestáveis! Saiam! – Seus gritos atraíam ainda
mais aqueles cadáveres ambulantes. Era preciso pensar rápido, e isso não era um
de seus fortes, já que palavrões pareciam não surtir efeito sobre a multidão
que se formava ao redor do carro.
Antes
que a primeira mão lhe tocasse, fechou o vidro e acelerou, passando por cima de
uma dezena deles, fez a volta sobre a calçada e tomou o caminho de volta para
seu apartamento. Não iria ao posto; seja lá o que estava acontecendo,
certamente teria atingido seu local de trabalho. – “Tomara”, pensou, abrindo um
sorriso enquanto colocava o pen drive no som do carro, berrando letras do
Marylin Manson até a entrada do prédio.
No
caminho nenhuma grande surpresa; os ex-cidadãos da cidade eram lentos o
bastante para serem facilmente deixados para trás. À frente, mas dois ou três
deles surgiram, todos devidamente atingidos pela lata velha, arrancando
risinhos sádicos de uma das poucas sobreviventes do caos.
Já
na porta do prédio, o riso deu lugar à náusea. Os cadáveres animados devoravam
vorazmente o velho tarado. Reconhecia a cabeça, com olhos arregalados e os
poucos dentes expostos, o resto do corpo já havia virado banquete para três
desses monstros, que puxavam o intestino do que restou da caixa torácica com a
mesma empolgação que uma criança brinca com queijo derretido.
Teve
nojo, náusea, sentiu a janta na noite anterior subir à garganta. Mas era o
velho tarado, e aquele fim não era muito diferente do que ela fantasiava para
ele. Só tinha um problema. Para variar, o aposentado estava sentado nos degraus
da entrada, e agora era justamente ali que estava sendo devorado. A única
entrada.
Estava
em meio ao apocalipse, certamente ali não haveria mais propriedades e vários
daqueles cadáveres ambulantes eram donos de carros melhores do que o seu. Assim
que o caos acabasse, tomaria um deles para si. Muito simples.
Apertou
o cinto de segurança e seguiu porta adentro, esmagando alguns deles contra a
parede e transformando o que restara do velho tarado em um tapete sob o pneu da
lata velha. Sem mais obstáculos, quebrou o para-brisa com o extintor e saiu pelo painel do carro diretamente para a
esperada segurança do interior do prédio.
Entrou
sem fôlego no apartamento, percebendo que a energia elétrica era coisa do
passado e que certamente teria problemas em se manter aquecida muito tempo, mas
estava coberta de suor. O frio não a invadiria tão cedo.
Deitou-se
na cama rindo sozinha. Sentia-se vitoriosa sem saber exatamente o motivo, já
que, presa no muquifo, não demoraria tanto assim para virar um deles.
Começou
a ouvir seu nome ao fundo como num delírio e a realidade ao redor começou a
ficar turva, até que outras cores, formas e pessoas se tornassem reais. Diante
de si, sua mãe, com um pano molhado, gritava seu nome.
-
Luciana! Luciana! Aleluia, conseguimos baixar sua febre!
Confusa,
apalpou a própria roupa descobrindo-se de pijama. Estava em casa, ardendo em
febre, com a mãe ao pé da cama cuidando dele como fazia em sua infância.
-
E os zumbis? - Falou com a voz fraca.
-
Não se preocupe com nada, minha filha, só em ficar boa, tá bom?
Luciana
sorriu; sentiu-se boba por perguntar de zumbis. Era um delírio, apenas um
delírio de uma pessoa ardendo em febre. Ouvia ainda um ruído, um gritinho
agoniado daqueles cadáveres animados buscando carne viva, mas estava tudo bem,
era só um pesadelo.
O
grunhido parecia mais alto, e mais alto, até que sua visão se deparou com
aquela que um dia havia sido sua irmã, chegando sorrateiramente por trás da mãe
que molhava o pano em água gelada. Com ela, o cunhado, também em versão
pós-morte, mas esse vindo em sua direção.
-Mãe!
- Gritou quase sem voz.
A
dor aguda. O sangue. O silêncio.
Nada
mais.