sábado, 23 de abril de 2016

Marcinha

                Pequena, eu sou você já com seus primeiros fios de cabelos brancos. Eu sou sua versão envelhecida, traumatizada, estigmatizada. Mas também sou o resultado da tua força, da tua perseverança, da tua veia, garra e sensibilidade.

                Sabe? As pessoas podem ser realmente cruéis com a gente, principalmente com você que ainda luta tanto pra se integrar a eles, mas quer saber? Tem sim muita gente que vale a pena, e nenhuma delas está na sua sala de aula.

                Seu mundo não é isso, seu mundo vai muito além dessas paredes e desse uniforme padronizado, desses cadernos rabiscados com poesias e daquele professor de literatura que sempre ignora seu braço levantado e idolatra a menina mais bonita da turma, mesmo que ela não saiba nem a metade que você.

                Isso vai acabar, te digo porque eu vi tudo isso acabar. O problema, Marcinha, é que você deixou isso acabar com você também. Você sobreviveu, pequena. Sobreviveu mesmo, já tem cabelos brancos, e no fundo você sabia que você sobreviveria, não é? Mas tudo parecia tão imediato, tão definitivo...

                Sim, eu sei que você teve medo do que viria depois. Eu lembro aquele dia que você estava na praia com seus pais, já se preparando pra voltar e colocou seu disco favorito no carro do seu pai esperando o pessoal terminar de se arrumar. Você tinha feito 17 anos há pouco e chorou fechada no carro, porque você sabia que no dia seguinte você teria problemas porque a garota popular da turma queria a música que você escolheu primeiro pra formatura, e você não estava disposta a ceder.

                Você não cedeu. A música era importante pra você. E quer saber? Você venceu! Sim, fizeram de tudo pra você ceder e você entrou com a música que você queria na formatura. Sim, eu sei, você perdeu várias noites de sono, quebraram seus lápis de desenho, eu lembro disso, e você já tinha enfrentado coisas bem piores antes, mas você estava cansada, eu sei.

                Mas deixa eu te dizer, o cansaço é parte do jogo. Eu também fico cansada, sabe? De vez em quando eu penso em desistir de tudo, bate um desânimo danado. Mas então eu me lembro que eu só tô aqui porque você não desistiu. Você foi forte pra caramba e, mesmo que tenha chorado tantas vezes no colo da sua (nossa) mãe, você enfrentou cada um daqueles dias, e você venceu.

                Eu não desisto porque eu devo isso a você. Você foi forte para que eu fosse possível. Marcinha, minha querida, talvez eu devesse ter te dito que te amo mais vezes. Porque eu te amo demais. Você não podia ter acreditado neles, eles não faziam a menor ideia da pessoa que você é, e perderam uma chance incrível de conviver com você. Você? Ah, você não perdeu nada. Não mesmo, porque eles sempre estiveram errados.

                Você preservava seu arzinho infantil e sua inocência, por isso eles te escolheram; porque eram incapazes de compreender o seu universo. Não tinha nada de feio em você, você era uma garotinha como outra qualquer, só que uma garotinha que eles não compreendiam, e isso nunca foi culpa sua.

                Você sobreviveu, Marcinha. Eu estou muito orgulhosa de você.

                E eu te amo.

                Era isso que eu queria te dizer se fosse possível te mandar essa carta. Você é forte, você é guerreira, você merece ser feliz.

terça-feira, 19 de abril de 2016

A rocha

                “E se não pudermos mais lutar?”

                Ele, fragilizado, se encolheu. Estava ferido. No corpo as marcas já não se mostravam mais, mas a alma permanecia despedaçada.

                Ela sorriu, um sorriso deveras tímido de quem fazia força pra não se deixar fraquejar. Ela não se deixaria abater por nada.

                “Nós conseguiremos.” – Respondeu com a voz rouca de quem tranca o choro.

                “Como você consegue?” – Perguntou ele, ainda no chão.

                Ela, de pé, com o corpo repleto de cicatrizes que por lá ficariam até o final de seus dias, respirou fundo. Não consigo – pensou em dizer – mas não era verdade, tanto conseguia que, apesar de tudo, ainda estava de pé.

                “Eles não me verão cair de joelho” – Respondeu firme. – “Ninguém jamais me colocará de joelhos outra vez”.

                Ele, do chão, sorriu. Ela era feita de ferro, de aço, de rocha. Tentaram de tudo para mantê-la no chão e fracassaram.

                “Façam o que fizerem, jamais me colocarão de joelhos outra vez”.

                Com as pernas firmes, colocando toda sua força para não deixar seus músculos demonstrarem a dor que lhe atravessava o corpo, estendeu a mão a ele.

                “Levante a cabeça” – Disse ela, firme.

                Como podia? Depois de tudo o que passaram, como podia se manter inabalável? – Pensou ele, chocado.

                Se pudesse responder ao pensamento ela diria – nenhuma alma morre duas vezes, a pior coisa que podia me acontecer já aconteceu, nada mais me fere assim. – Ela era o resultado do ápice da crueldade. Além de sangue, haviam arrancado dela sua capacidade de ter medo.

                E ela não tinha mesmo. Destemida e firme. De cabeça erguida, ignorou a dor e seguiu em frente.

                Ninguém a colocaria de joelhos outra vez.


sábado, 2 de abril de 2016

SOBREVIVÊNCIA – A rainha


                Quando entrei no segundo ano do segundo grau, eu estava sozinha. As minhas três grandes amigas do primeiro grau saíram da escola, duas pra uma e a terceira pra outra, e os amigos que restaram no segundo grau, reprovaram no primeiro ano.

                Entrei numa turma com muita gente nova e alguns que sobraram do passado e já me olhavam torto porque a filha do representante comercial e da dona de casa, com sobrenome difícil e sem nenhum status social não merecia nem bom dia.

                No primeiro bimestre, sendo diariamente relembrada do meu crime de ser uma adolescente de 14 anos gorda, deixei meu desempenho escolar cair bruscamente e, da aluna exemplar nota 10, me tornei a aluna distraída nota 4.

                Meus pais, percebendo que isso ia terminar muito mal e sabendo qual era o motivo de meu desempenho ter caído de maneira tão brusca, decidiram me trocar de escola. Escolhi a escola onde estavam Camila e Alana. Era mais cara, seria mais complicado para eles, mas eu já vinha de um histórico tão violento de bullying – que culminou com duas surras ainda no primeiro grau, que ele julgaram que seria um sacrifício válido, afinal, eu mantinha contato com elas e já conhecia alguns futuros colegas.

                O que eu não sabia é que, ao mesmo tempo que nos encontrávamos na saída da escola e eu me dava bem já com seus novos amigos, elas não desejavam efetivamente me ter por perto e iniciaram uma campanha difamatória tão logo eu anunciei que trocaria de escola. Eu estranhei quando, no meu primeiro dia, um desses amigos delas gargalhou ao me ver de uniforme na porta da escola. Ele não me cumprimentou, apenas riu, e minhas pernas tremeram.

                Mesmo assim eu entrei pro meu primeiro dia cheia de fé. As coisas nem de longe se pareceram com as minhas fantasias, cheguei na escola e me vi imediatamente sozinha. As meninas até falaram comigo, mas agora que eu estava lá oficialmente colega delas outra vez, eu já não era mais da turma. Durante meses o maior diálogo que tive com aquelas pessoas que eu acreditei que eram minhas amigas a ponto de fazer todo um esforço para ser colega delas foi na psicóloga da escola, que nos chamava com frequência tanto pelo isolamento promovido contra mim quanto por fofocas de que eu seria louca por escrever poesia na aula de química.

                Porém, poucas coisas me deixaram mais tensa do que receber duas notícias no mesmo dia: sobre a campanha difamatória e sobre a eleição da rainha da escola. Perto do final do ano, na época das festas de encerramento onde eram escolhidos o menino e a menina mais bonitos da escola, uma pessoa me procurou pra contar que as minhas adoradas amigas tinham contado história horríveis a meu respeito nas vésperas da minha chegada, e essa pessoa achou muito estranho que meu comportamento naqueles meses não era compatível com os horrores que circulavam contra mim nos corredores da escola.

                Por essa razão, mesmo sem ser minha amiga e sem jamais ter conversado comigo, essa pessoa me contou que o pessoal estava fazendo uma campanha de votos para que eu ganhasse a coroa de rainha da escola. Ora, por óbvio eu, baixinha, gorda e esquisita, jamais seria eleita a tal título por beleza, o objetivo era a promoção da humilhação pública, já que não apenas toda a escola estaria na festa, mas jovens de todas as outras escolas também. Aliás, sempre que eu lembro dessa história eu penso em Carrie, a personagem de King, e do sangue de porco.

                Foram noites de sono perdidas entre lágrimas e uma tensão absurda pelo medo do que iria me acontecer. Eu estava com risco de reprovação por consequência das notas horrendas do primeiro bimestre e porque a grade curricular das escolas era completamente diferente, então pesavam sobre mim o medo de perder o ano, a convivência com o isolamento e os pequenos bullyings do dia a dia e agora o medo profundo de ser publicamente humilhada na festa de final de ano – a qual eu obviamente não iria, nem por isso seria menos humilhante.

                Numa dessas noites insones em desespero, tive uma ideia. No dia seguinte, faltando poucos dias pra festa, procurei a pessoa da escola que apuraria os votos, expliquei a situação e deixei meu nome. A festa passou sem a minha presença e, como não existiam redes sociais – mal e mal internet – eu só fui ter notícias na segunda-feira. Ninguém na sala comentou o assunto e tudo o que eu soube da festa pelos colegas foi quem pegou quem.

                No recreio procurei a pessoa que apurava os votos e recebi a notícia que partiu meu coração (de novo). Sim, a campanha foi real. Ela me garantiu que mesmo que ela não tivesse anulado meus votos, eu não teria chegado a ganhar o título, mas sim, fui votada em peso pelas duas turmas do segundo ano.

                Essa nem de longe foi a pior coisa que me aconteceu, já que o objetivo deles não chegou a ser concretizado, mas eu estava sozinha, tinha sido traída por quem eu considerava amiga e precisava voltar pra aula. Como agir?

                Tive mais um ano inteiro cheio de histórias iguais ou ainda piores e saí da escola sem saber como se age numa situação assim. Talvez eu nunca vá de fato aprender. Acho que ninguém aprende.