sábado, 4 de março de 2017

O silêncio

O presente conto foi escrito para uma seleção promovida pelo autor de fantasia/terror André Vianco. O tema era justamente histórias em território urbano que envolvessem terror e fantasia. De imediato o Hospital Psiquiátrico de Barbacena me veio à mente. Vocês conseguem imaginar terror mais assustador - a um ser com empatia - do que o estado absurdo que os pacientes eram tratados lá.
Bom, não fui selecionada, talvez não fosse bem esse tipo de terror que se esperava, faz parte da vida. Também não acho que esse conto seja exatamente maravilhoso porque a limitação de caracteres e tempo para escrevê-lo fez com que ele não fosse trabalhado da forma que eu gostaria.

Mas cá está ele. Em agradecimento à Daniela Arbex, autora do livro Holocausto Brasileiro, pelo esforço e luta para que essa história - a real - fosse contada.

O Silêncio

Cheguei à Barbacena por volta das 14h de um domingo de sol. Estávamos próximos da época da colheita e Dona Gerusa, comadre de minha mãe, precisava de ajuda já que seus três moleques resolveram virar doutor. Eu tinha 16 anos, tinha abandonado a escola em Lavras e passava a maior parte do meu tempo vendo reprises de novelas na televisão. Bastou uma ligação de Dona Gerusa para minha mãe, já um tanto esgotada do filho vagabundo, me colocar no primeiro ônibus com uma mochila nas costas e me despachar para Barbacena. 

Dona Gerusa era uma mulher de muitos fios brancos e mais rugas do que pele lisa em um rosto marcado pelos anos de sol a sol colhendo flores em um campo próximo à sua pequena casa de alvenaria, graças a um genro que ela demorou a aceitar porque acreditava que o casamento do rapaz com seu filho do meio era pecado. 

Barbacena não era nem de longe minha cidade favorita. Cidade com cara interiorana e ritmo de metrópole; talvez eu apenas sentisse saudade da minha vagabundagem consciente em nossa pequena casa verde em Lavras. Ou talvez pelo imenso susto que tomei já na minha primeira noite no minúsculo quarto onde Dona Gerusa me acomodou. 

Devia ser por volta de 3h da manhã quando comecei a ouvir gritos de uma dor lamurienta, como se misturasse uma dor física aguda com uma amargura na alma irremediável. Eram gemidos em alto volume enquanto a luz fraca do corredor piscava. Usavam a rede elétrica para torturar alguém, não tinha outra explicação. 

Saltei da cama com meu coração na boca. Sentia cada um de meus vergonhosos músculos de franguinho tremerem e fiquei na dúvida se me escondia sob a cama ou corria em busca de socorro ao pobre infeliz, que seguia gemendo em alto volume. 

Em poucos minutos, outros gritos e gemidos somaram-se a ele e formavam praticamente um coral de sofrimento. Podia sentir em meu âmago todo aquele lamento, uma mistura agoniante de tristeza e dor, um sofrimento que penetrava em meus poros e me levou às lágrimas. Eu não chorava de medo, chorava por empatia. 

Não sei precisar que horas os gritos e gemidos cessaram, sei apenas que fui acordado na manhã de segunda para o início da colheita e já, ao despertar, me sentia profundamente exausto. Dona Gerusa percebeu meu estado e se desculpou por não ter me alertado antes. 

- É o hospício. 

- Que hospício? 

- Nunca ouviste falar? Tem um hospício nas redondezas. Muita gente morreu lá, eu lembro das pilhas de corpos esqueléticos que saíam de lá; meu pai, quando eu era só uma garotinha, me levava aos trilhos para ver os corpos, eles nem sempre cobriam e era possível ver as queimaduras na cabeça por causa dos choques elétricos. 

Fiquei sem chão. Sim, os choques, os gritos de dor, a tristeza. Passam a noite torturando seres humanos sob o conhecimento público. Como nunca tinha ouvido falar de tamanho horror? 

- Por que seu pai levava a senhora para ver os mortos? 

- Porque naqueles tempos o hospício não era só para os loucos, mas para os desajustados também, e moça de família que saísse da linha cruzava aqueles portões e nunca mais voltava pro lado de cá a menos que tivesse naquela pilha de corpos. Meu filho do meio, o moço casado com o rapaz que fez essa casa, teria ido pra lá se tivesse nascido em outros tempos. 

- Por ser gay? 

- Por ser desajustado, em desacordo com o resto da família. Sim, por ser gay. Muitos deles morreram ali. 

- A senhora teria coragem de colocar seu filho em um lugar onde pessoas são torturadas com choques elétricos? 

Ela suspirou. Percebi que havia tocado num ponto que não devia. Talvez ela se envergonhasse de ter cogitado mandar seu filho para um matadouro de seres humanos. Talvez ela sofresse toda noite ouvindo o grito dos desajustados pensando que por pouco seu filho não se tornou um deles. 

- Eram outros tempos, meu filho. Eram outros tempos. 

Encerramos o assunto, mesmo com a minha vontade de perguntar se o filho do meio sabia que um dia existira a intenção de joga-lo para trás daquelas muralhas onde pessoas viravam cadáveres sem que ninguém questionasse, pelo contrário, as pessoas contribuíam com o crescimento da pilha de corpos se livrando de seus próprios familiares. Pelo olhar ressentido de Dona Gerusa, imagino que o menino cresceu sabendo que escapou por pouco. 

O trabalho iniciado naquela manhã parecia mais árduo do que eu podia prever, talvez pelo cansaço, talvez pela impotência de saber que naquela madrugada eu seria novamente acordado com gritos e não poderia fazer nada a respeito. 

E foi exatamente o que aconteceu. Mas talvez o mais triste, até aquele ponto, é que eu, assim como todos que viviam nos arredores do hospício, me acostumei com os gritos na madrugada, eu ouvia diariamente pessoas em intenso sofrimento e aquilo já não me afetava mais. A gente endurece e a dor alheia para de nos chocar. 

Foi em um desses momentos que, em um sábado chuvoso, conheci Aurora. Ela era magra e pálida como um cadáver, não tinha muita lógica no que ela dizia, mas ainda assim sorria pra mim, sem um único dente restante na boca. De início julguei que Aurora devia ser uma senhora de uns 40 anos desgastada pela dor, pelo tratamento desumano e pelo abandono, mas era apenas uma moça de 25 anos que havia sido largada lá pelo pai, depois de uma gravidez indesejada. 

Gostei dela, de sua insanidade, de sua falta de lógica. Chorei com ela, com sua história de uma vida boa destruída por interesses alheio. Chorei ao saber que sua loucura foi fabricada dentro daqueles muros, entre um choque e outro, entre uma refeição vencida e outra apenas dias depois, porque chegara lá perfeitamente saudável, mas grávida. Chorei ao saber que enterrou seu bebê natimorto em algum ponto dos jardins sem flores daquela edificação maligna. 

Eu e Aurora nos encontramos mais três vezes, todas em sábados chuvosos, sempre pelas redondezas do hospício que silenciava durante o dia como se não tivesse ninguém lá. Em todas chorávamos juntos as desgraças de sua vida e eu ouvia atentamente os relatos de horrores que ela vivia por lá. Minha temporada em Barbacena estava chegando ao fim com o encerramento da colheita e eu tinha muita vontade de tirar Aurora de lá e dá-la o tratamento adequado para superar os traumas que aquele lugar a causou. 

Pois foi que na véspera da minha partida, Aurora não apareceu. Era um sábado chuvoso como todos os outros que nos encontramos, mas ela não apareceu. Senti-me triste, havia levado um bolo como presente de despedida, que acabou se despedaçando pelo tempo longo exposto à chuva. Fui embora do nosso ponto de encontro ciente que nunca mais a veria, ou sequer teria notícias dela. 

Na manhã seguinte, já com a mochila pronta, resolvi questionar Dona Gerusa. Era impossível que aquela senhora nunca tivesse se encontrado com Aurora em sua vizinhança, e talvez ela soubesse um pouco mais da história da moça que me partiu o coração. 

- Conheces a Aurora, Dona Gerusa? – Questionei, entre goles de seu café sempre meio aguado. 

- Do que você está falando, moleque? – Ela não se virou para olhar para mim, mas sua forçada irritação na voz deu a impressão de que ela conhecia muito bem a história, mas não queria lembrar. 

- Por favor, Dona Gerusa, em menos de uma hora estarei embarcando de volta à Lavras, a senhora não precisará mais me olhar nos olhos. Fale-me dela, a senhora a conhece? 

Dona Gerusa suspirou e saiu da cozinha. Me senti levemente derrotado, não teria outra chance de conhecer melhor Aurora e isso me gerou uma tristeza profunda. Até que ela voltou com um velho álbum de fotografias, aberto em uma página amarelada pelo tempo revelando uma fotografia de tempos bastante remotos mostrando uma moça na faixa dos 20 anos, vistosa, bonita e de semblante alegre, e um menino que não devia passar dos 10 anos de olhar levemente assustado. 

- Então garoto, esse menino da foto é meu pai, aos 9 anos. A moça é minha tia, Aurora, aos 22. Essa fotografia foi feita no dia de seu noivado e meu pai se lembrava que ela estava radiante. – Na sua pausa, me senti empalidecer como se a cor de meu corpo escorresse pelos poros, eu já imaginava onde isso iria parar. – Eu não a conheci, porque alguns meses depois, tia Aurora se descobriu grávida. Só que o casamento só estava marcado para alguns meses depois, a gravidez revelou que tia Aurora não era mais virgem e isso fez com que meu avô a colocasse no hospício, para esconder a vergonha da família. 

Não fazia sentido, a moça da fotografia devia estar morta há décadas, e eu a havia encontrado apenas dias antes! Dona Gerusa percebeu minha inquietação. 

- Ela está morta sim. Mesmo que não soubéssemos que ela morreu não muito depois da internação, ela já estaria morta igual, por velhice. Nos mudamos para Barbacena quando eu tinha 4 anos, exatamente porque meu pai queria saber o que tinha acontecido com ela, e eu passei a infância sabendo que se não me portasse como uma boa menina, teria o mesmo destino dela. Por isso víamos os mortos nos trilhos. Éramos criados sabendo que podíamos virar um daqueles cadáveres se saíssemos da linha. 

- Mas... e por que ninguém faz nada? Os gritos à noite, existem pessoas sendo torturadas lá todos os dias! 

- Não, garoto. O hospício foi fechado há mais de 30 anos, estão todos mortos, inclusive sua amiga Aurora. Acontece que a dor deles ficou impregnada naquelas paredes e por isso somos capazes de ouvi-los sofrer quando o silêncio da madrugada toma a cidade. 

Estão... todos... mortos... 

Fui embora de Barbacena pra nunca mais voltar, mas aquela frase ficou registrada feito tatuagem em minha cabeça, nunca fui capaz de esquecer os gritos, os gemidos, Aurora. Até hoje os escuto, porque em minha mente nunca mais se fez o silêncio.