Conto premiado, 1º lugar Concurso Anual Literário da Prefeitura de Caxias do Sul - 2015
Talvez isso seja apenas mais um adeus entre tantos que já
esbocei em páginas tão alvas e solitárias quanto essa. Talvez dessa vez seja
possível que o suspiro finalize a dor. Talvez enfim seja eu capaz de respirar a
plenos pulmões pela última vez.
Dedos me apontarão, dirão que sou covarde, dirão que não
tive amor por quem me amou. Não sabem de nada. Não sentem o frio da minha pele,
não sentem o calor das gotas de sangue que escorrem entre meus pelos cada vez
que fica insuportável demais para segurar dentro de um só coração. Não sabem o
quanto dói minha garganta enquanto tento engolir as tantas vezes que já me
julgaram em vão.
Dirão que sou ingrata sem saber o quanto lutei para
chegar até aqui. Dirão que optei pelo mais fácil enquanto minha cabeça passou
toda minha vida me dizendo pra partir e eu finquei o pé dizendo que não. Me
chamarão de fracassada mas jamais saberão como é calçar os meus sapatos.
Dirão que falhei. Falhei. Falhei ao lutar com tanto
afinco para não me deixar cair sobre o colo de um anjo nas tantas vezes que
clamei por piedade, por clemência à rocha que me invadia por dentro. Dirão que
foi frescura e eu não lhes direi mais nada porque minha voz terá sido enfim
calada pelo desejo irresistível de não-ser.
Então muitos não entenderão. Não espero que entendam. Se
não entenderam até hoje, não será agora que já não tenho mais eu para explicar,
e explicar, e explicar. Mas talvez se apiedem, a coitada covarde, a infeliz,
aquela que nunca soube ver o valor das pequenas coisas quando na verdade foram
eles que jamais ficaram parados feito loucos em uma esquina para ver um
passarinho cantar.
As palavras ferem como navalhas. Os pequenos gestos que
passam despercebidos vão arrancando pouco a pouco tudo o que me restou de força
para ainda ser. Como quando observava uma pequena flor em um canteiro de
concreto e aquele alguém que jamais vi o rosto escolheu exatamente aquele
pedacinho de terra para cravar o pé abotinado. Vi a pequena e indefesa flor se
despedaçar junto com o que me restava de sanidade.
Sanidade essa que tanto lutei, mas não sou como os
outros. Não nasci para ser, nasci para lutar segundo a segundo e sucumbi à
guerra. E nenhum de vocês dirá que fui guerreira. No meu epitáfio sobrarão
rancores. Não me perdoarão, mas não busco seu perdão, busco minha paz.
Serei julgada, condenada, odiada. Meu nome se ligará à
dor daqueles que deixei. Que não pensem que me faltou amor; pelo contrário, dei
e recebi tudo o que pude nessa longa e cansativa jornada. Mas até o mais nobre
guerreiro é finito, eu não haveria de ser diferente. Não é porque escolhi o dia
de voltar pra casa que me torno menos digna da batalha que lutei.
Perdi, e nada disso me impede de erguer a cabeça e sair
triunfante. Que me julguem, que me difamem, que virem as costas à minha lápide,
ainda estarei triunfante pelas tantas vezes que venci a morte nas tantas vezes
que meu coração me pediu pra parar. Nenhuma delas eu desisti. Fui uma
sobrevivente.
Mas há de convir que caminhar por cacos de vidros sob pés
descalços requer equilíbrio, força, foco, e eu não estou disposta a oferecer
nem mais um pedacinho de mim pra essa jornada. Findaram os motivos. Findaram as
forças. E pelas minhas mãos agora só permito esboçar um adeus.
Eu fiz tudo o que pude. Fui além. Me reinventei. Me
reconstruí. Hoje guardo as peças para brincar em outro quintal. Essa velha e
surrada carcaça não atende mais meus sonhos, minha emoções e minhas dores.
Sim, fiz tudo o que pude. Juro que lutei feito louca – ou
justamente por sê-lo. Juro que testei todas as armas antes da rendição. Se me
permiti alcançar meus cabelos brancos, não foi por outro motivo que não pelo
tanto que tentei. Se desisti não foi por outro motivo que não a exaustão. Cada
passo controlado, sempre segurando com força uma corda da vida que por sua vez
me esfolou as mãos.
Não me julgue, não sabes como é. Talvez se sentisse no
peito o rajar das pedras, não tivesse chegado tão longe quanto eu cheguei. E
quando eu fechar meus olhos, por favor, se fora pra pensar em mim com desprezo,
prefiro que me esqueça.
Mas se não quiser me esquecer, não lembre de mim com
lágrimas nos olhos se não forem de emoção. Lembre que sorri. Lembre que ri, que
gritei de alegria. Lembre das tantas vezes que contei boas piadas. Tente se
lembrar das vezes em que fomos felizes, e não daquelas que você achou que fosse
me perder. Não lembre dos abraços para acalmar minha dor, mas nos abraços
puramente de amor. Não lembre do meu olhar dolorido, lembre-se de tantas vezes
que meus olhos traduziram felicidade. Esses momentos existiram e eu sei que
podem me representar quando eu mesma já não o puder fazer.
Se nada disso for possível, que apague minha existência
de sua memória e do seu coração. Deixe que tudo o que eu fui vire pó com o
corpo que usei ao longo dessa caminhada do nada ao lugar nenhum.
Não! Por favor, não me despreze. Não lutei tanto para
perder seu amor quando mais preciso que me entendas. Tente compreender as
facetas dessa dor intensa que me invade. Tente respeitar meu luto de mim mesma,
não me deixe partir pensando que te feri. Por favor, não me deixe ir sem que
saiba que nada disso é culpa sua. Nem minha.
Não é culpa sua se meu coração arde. Não é culpa minha se
minha alma não consegue mais se manter trancada nesse corpo. Não é culpa nossa
se o sol parece não brilhar mais pra mim. Se os sorrisos não mais me alegram.
Se palavras bonitas não são mais absorvidas pelos meus ouvidos. Se meus dias
tornaram-se cinzas. Pense que triste quando a vida perde a cor.
Talvez se eu conseguisse voltar a sentir as coisas com
mais leveza... se eu ainda fosse capaz de observar as crianças nos parques e
lembrar do quanto era boa essa inocência. Talvez se eu tentasse olhar para o
céu e encontrar coelhos nas nuvens. Ou talvez cheirar uma flor, ouvir o canto
de um pássaro, levar meu cachorro para passear... e se eu tentasse ler um bom
livro, ouvir uma música que me desse vontade dançar...
E se eu tentasse... e se eu tentasse pelo menos mais uma
vez...
E depois que eu parar de sangrar na alma, rasgarei essa
folha. Amanhã será um novo dia e eu sei que aqui ainda estarei para dar ao meu
coração mais uma chance.
Pelo menos mais uma chance.