Eu os
amava e não era pouco. Não vou dizer que beirava à insanidade porque na verdade
já tinha ultrapassado esse limite. Eu passava o ano todo esperando para
encontra-los, mas eles definitivamente não tinham essa mesma expectativa por
mim.
Era
verão, mais precisamente o verão de 1991, que eu os conheci. Minha avó era dona
de uma casa em uma praiasinha no litoral norte do RS. Uma das primeiras casas
que foram construídas na praia, diga-se. Minha avó teve 4 filhos, um mora no
Rio de Janeiro há algumas décadas, então os 3 irmãos restantes e suas famílias
dividiam a casa em questão.
Eu
estava com 8 anos nessa época e as coisas iam bem, então, para não termos que
ficar pouco tempo na praia pra ceder a casa à família seguinte, meu pai decidiu
alugar uma ali perto. Bem perto, inclusive; pelo quintal da casa da minha avó,
passando pelo quintal da casa vizinha – que era de esquina – bastava atravessar
a rua e dar meia dúzia de passos para chegar à porta da casa alugada.
Apesar
de praticamente colada na casa onde veraneei até ali, a casa alugada trouxe
todo um universo novo pra mim. Eu estava fazendo um dramalhão danado por estar
“longe” dos amiguinhos quando os vizinhos da casa alugada me chamaram pra
brincar. Esconde-esconde, e o “bando” era o pilar da casa ao lado da alugada,
onde veraneava aquele que foi minha paixão adolescente mais duradoura (eu já
tinha passado dos 20 anos quando efetivamente o sentimento se dissipou de vez).
Do
outro lado da rua veraneavam um casal de primos e um casal de irmãos que
completava a “turminha”. Ao longo dos anos essa configuração mudou bastante até
que eu mesma não pertencesse mais ao grupo, mas até ali, éramos nós 6. O foco
aqui, na verdade, fica muito mais nos irmãos e no “crush”. Eu os venerava pela
inteligência, pela conversa, pela maturidade que eu enxergava neles e eles
viraram semi-deuses pra mim.
O crush
era uns 3 anos mais velho, os irmãos iam mais pra cima ainda, então quando
chegávamos na praia, a cada verão, eles estavam com um acervo ainda maior de
conhecimento, e eu estava sempre ávida por esse conhecimento. Eram longas
noites falando de literatura e filosofia. Eles declamavam Augusto dos Anjos e
eu babava.
Só que,
numa certa altura da adolescência, a diferença de idade pesa.
Entrei
na fase de rechear a agenda de recortes de revista e versinhos enquanto eles
liam Goethe e aprendiam alemão. Eles eram altos, iam pra balada durante o ano e
eu era a baixinha gorda monocelha que escrevia poesia pra um crush adolescente
que achava tudo aquilo patético. Eu gastava minha mesada comprando ficha de
fliperama para eles jogarem com esperança que assim eles gostassem de mim.
Não os
estou culpando pelos meus sentimentos, nem pelas fichas de fliperama, tampouco
os culpo por não terem sido capazes de efetivamente gostar de mim, mas os culpo
sim por inúmeras situações constrangedoras que me fizeram passar, se
aproveitando da ciência de que eu faria tudo o que quisessem.
Foi uma
dessas situações que me marcou.
Como
disse antes, cheguei naquele momento da adolescência que a moda era ter uma
agenda cheia de bugiganga; quanto maior ela ficasse, maior o status. Então a
gente colava praticamente objetos inteiros, como clipes em forma de prendedor
pra anexar uma foto, ou um laço de um presente; enfim, a agenda ficava gigante
e o orgulho também.
Eu
trabalhava o ano inteiro pra deixar a minha agenda bem artística. Fazia
colagens e poemas, cada página era uma surpresa, e eu gostava de mostrar pra
todo mundo. Imagina se eu não chegava na praia cheia de expectativa pra mostrar
minha agenda para meus semi-deuses? Especialmente porque além da trabalheira
toda de criatividade nas colagens, tinha muito texto meu lá
.
Quando
eu tinha algo em torno de 12 ou 13 anos, no máximo, falei da minha agenda na
casa dos irmãos. Estávamos em vários lá, umas 5 ou 6 pessoas além de mim, e me
convidaram a buscar minha agenda em casa, pra mostrar minhas colagens e meus
versos. Eu literalmente fui correndo em casa buscar, feliz, faceira, realizada,
eu mostraria meu trabalho aos meus ídolos! Que chance de mostrar a eles que eu
também era inteligente e criativa!
Lembro
que eu mal cabia em mim mesma de alegria, voltei lá abraçada na minha agenda
repetindo na minha cabeça o que eu diria a eles nas páginas principais –
reservei as páginas de aniversário deles para os trabalhos mais caprichados –
quando cheguei na frente da casa e me deparei com a varanda vazia.
Vazia.
Sequer
as cadeiras estavam lá. Entrei e bati na porta. Ninguém atendeu. Do outro lado
da rua, em outra varanda, pessoas riam. Não sei quanto tempo passou, mas pra
mim foi uma eternidade até que uma dessas pessoas, com pena, avisou que eles
tinham saído todos em direção ao centro tão logo eu virei a esquina.
Fiquei
sem reação. Nenhuma. Segui rumo ao centro, ainda abraçada na enorme agenda mas
com o pensamento em ebulição, segurando o choro. Dobrei a rua e fui até a
esquina seguinte, que dava exatamente para a porta do fliperama. Eles estavam
lá. Todos eles. O primeiro que me viu gargalhou e cutucou os demais, que me
viram parada, na outra esquina, abraçada na agenda e certamente vermelha de
vergonha. Todos riram. Nos dias seguintes alguém me disse que era pra eu
relaxar, era só brincadeira.
Aconteceu
mais 2 ou 3 vezes, nos anos seguintes, de me pedirem pra buscar algo em casa e
fugirem correndo na minha ausência, mas eu ainda levei alguns anos pra me
afastar. O bizarro é que, quando eu finalmente me afastei, me procuraram pra
saber o que houve.
Depois
de adultos voltamos a ser amigos, daquele jeito meio “oi tudo bem, vamos marcar
alguma coisa hora dessas”. O crush, que hoje é casado e pai de família, acabou
anos depois me pedindo desculpas. Me pegou de surpresa, inclusive. Certa noite,
na varanda da casa dele, me disse “a gente era ruim contigo, né? Desculpe por
isso, tu não merecia”. De todos que me
fizeram mal, apenas ele me pediu desculpa.
Não, eu
não espero que mais alguém tenha a mesma atitude que ele, mas garanto que
reconhecer o que fez e pedir desculpas não o fez mal algum, e ajudou a
cicatrizar as feridas que ele mesmo ajudou a abrir.
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SOBREVIVÊNCIA não é uma série de ficção.