quinta-feira, 4 de maio de 2017

SOBREVIVÊNCIA - A fuga


                Eu os amava e não era pouco. Não vou dizer que beirava à insanidade porque na verdade já tinha ultrapassado esse limite. Eu passava o ano todo esperando para encontra-los, mas eles definitivamente não tinham essa mesma expectativa por mim.

                Era verão, mais precisamente o verão de 1991, que eu os conheci. Minha avó era dona de uma casa em uma praiasinha no litoral norte do RS. Uma das primeiras casas que foram construídas na praia, diga-se. Minha avó teve 4 filhos, um mora no Rio de Janeiro há algumas décadas, então os 3 irmãos restantes e suas famílias dividiam a casa em questão.

                Eu estava com 8 anos nessa época e as coisas iam bem, então, para não termos que ficar pouco tempo na praia pra ceder a casa à família seguinte, meu pai decidiu alugar uma ali perto. Bem perto, inclusive; pelo quintal da casa da minha avó, passando pelo quintal da casa vizinha – que era de esquina – bastava atravessar a rua e dar meia dúzia de passos para chegar à porta da casa alugada.

                Apesar de praticamente colada na casa onde veraneei até ali, a casa alugada trouxe todo um universo novo pra mim. Eu estava fazendo um dramalhão danado por estar “longe” dos amiguinhos quando os vizinhos da casa alugada me chamaram pra brincar. Esconde-esconde, e o “bando” era o pilar da casa ao lado da alugada, onde veraneava aquele que foi minha paixão adolescente mais duradoura (eu já tinha passado dos 20 anos quando efetivamente o sentimento se dissipou de vez).

                Do outro lado da rua veraneavam um casal de primos e um casal de irmãos que completava a “turminha”. Ao longo dos anos essa configuração mudou bastante até que eu mesma não pertencesse mais ao grupo, mas até ali, éramos nós 6. O foco aqui, na verdade, fica muito mais nos irmãos e no “crush”. Eu os venerava pela inteligência, pela conversa, pela maturidade que eu enxergava neles e eles viraram semi-deuses pra mim.

                O crush era uns 3 anos mais velho, os irmãos iam mais pra cima ainda, então quando chegávamos na praia, a cada verão, eles estavam com um acervo ainda maior de conhecimento, e eu estava sempre ávida por esse conhecimento. Eram longas noites falando de literatura e filosofia. Eles declamavam Augusto dos Anjos e eu babava.

                Só que, numa certa altura da adolescência, a diferença de idade pesa.

                Entrei na fase de rechear a agenda de recortes de revista e versinhos enquanto eles liam Goethe e aprendiam alemão. Eles eram altos, iam pra balada durante o ano e eu era a baixinha gorda monocelha que escrevia poesia pra um crush adolescente que achava tudo aquilo patético. Eu gastava minha mesada comprando ficha de fliperama para eles jogarem com esperança que assim eles gostassem de mim.

                Não os estou culpando pelos meus sentimentos, nem pelas fichas de fliperama, tampouco os culpo por não terem sido capazes de efetivamente gostar de mim, mas os culpo sim por inúmeras situações constrangedoras que me fizeram passar, se aproveitando da ciência de que eu faria tudo o que quisessem.

                Foi uma dessas situações que me marcou.

                Como disse antes, cheguei naquele momento da adolescência que a moda era ter uma agenda cheia de bugiganga; quanto maior ela ficasse, maior o status. Então a gente colava praticamente objetos inteiros, como clipes em forma de prendedor pra anexar uma foto, ou um laço de um presente; enfim, a agenda ficava gigante e o orgulho também.

                Eu trabalhava o ano inteiro pra deixar a minha agenda bem artística. Fazia colagens e poemas, cada página era uma surpresa, e eu gostava de mostrar pra todo mundo. Imagina se eu não chegava na praia cheia de expectativa pra mostrar minha agenda para meus semi-deuses? Especialmente porque além da trabalheira toda de criatividade nas colagens, tinha muito texto meu lá
.
                Quando eu tinha algo em torno de 12 ou 13 anos, no máximo, falei da minha agenda na casa dos irmãos. Estávamos em vários lá, umas 5 ou 6 pessoas além de mim, e me convidaram a buscar minha agenda em casa, pra mostrar minhas colagens e meus versos. Eu literalmente fui correndo em casa buscar, feliz, faceira, realizada, eu mostraria meu trabalho aos meus ídolos! Que chance de mostrar a eles que eu também era inteligente e criativa!

                Lembro que eu mal cabia em mim mesma de alegria, voltei lá abraçada na minha agenda repetindo na minha cabeça o que eu diria a eles nas páginas principais – reservei as páginas de aniversário deles para os trabalhos mais caprichados – quando cheguei na frente da casa e me deparei com a varanda vazia.

                Vazia.

                Sequer as cadeiras estavam lá. Entrei e bati na porta. Ninguém atendeu. Do outro lado da rua, em outra varanda, pessoas riam. Não sei quanto tempo passou, mas pra mim foi uma eternidade até que uma dessas pessoas, com pena, avisou que eles tinham saído todos em direção ao centro tão logo eu virei a esquina.

                Fiquei sem reação. Nenhuma. Segui rumo ao centro, ainda abraçada na enorme agenda mas com o pensamento em ebulição, segurando o choro. Dobrei a rua e fui até a esquina seguinte, que dava exatamente para a porta do fliperama. Eles estavam lá. Todos eles. O primeiro que me viu gargalhou e cutucou os demais, que me viram parada, na outra esquina, abraçada na agenda e certamente vermelha de vergonha. Todos riram. Nos dias seguintes alguém me disse que era pra eu relaxar, era só brincadeira.

                Aconteceu mais 2 ou 3 vezes, nos anos seguintes, de me pedirem pra buscar algo em casa e fugirem correndo na minha ausência, mas eu ainda levei alguns anos pra me afastar. O bizarro é que, quando eu finalmente me afastei, me procuraram pra saber o que houve.

                Depois de adultos voltamos a ser amigos, daquele jeito meio “oi tudo bem, vamos marcar alguma coisa hora dessas”. O crush, que hoje é casado e pai de família, acabou anos depois me pedindo desculpas. Me pegou de surpresa, inclusive. Certa noite, na varanda da casa dele, me disse “a gente era ruim contigo, né? Desculpe por isso, tu não merecia”.  De todos que me fizeram mal, apenas ele me pediu desculpa.


                Não, eu não espero que mais alguém tenha a mesma atitude que ele, mas garanto que reconhecer o que fez e pedir desculpas não o fez mal algum, e ajudou a cicatrizar as feridas que ele mesmo ajudou a abrir.
____________________________________________________________

SOBREVIVÊNCIA não é uma série de ficção.