quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Volta e meia - parte 6



- Você faz o que? – Ele parecia tão à vontade que eu me senti mais constrangida ainda por estar tão constrangida 

- Sou contadora. – Respondi me encolhendo. 

- Conta uma piada! – Ele sorriu. 

- Por que eu contaria uma piada? 

- Ué, você não é uma contadora? – E gargalhou. Eu só queria sair dali. 


** 

Margô é bem intencionada. O problema é que ela é fera em chantagem emocional e, mesmo tendo optado pela solteirice, parece não gostar nadinha que suas amigas vivenciem o mesmo. Quando recebi uma mensagem dela no meio da tarde me convidando para um happy hour, imaginei que o convite não viria sozinho. 

- Ele é super divertido, você vai adorar! – Garantiu ela ao telefone depois de 6 mensagens minhas recusando o convite. 

- Ele quem? – Eu sabia! Ela é muito previsível. 

- O Fábio, meu amigo. 

- Desculpe, não sei quem é. 

- Ah, não mencionei ele nas mensagens? Que lapso! Bom, o causo é que ele é um solteirão boa pinta e eu convidei ele pra ir com a gente no bar. 

Margô, eu recusei 6 vezes e não aceitei nenhuma, o que te leva a crer que vou a um bar com você e com o Fábio hoje? 

- Eu te conheço. Passo no seu escritório às 18h. – E deligou. Sim, ela me conhecia. Eu iria no maldito bar. 

*** 

Quando chegamos ele já estava lá. Era boa pinta mesmo, ostentava uma beleza humilde, nada muito chamativo, mas certamente não parecia alguém que me causaria repulsa. Pelo menos não enquanto estivesse quieto. Passadas as apresentações, fomos atendidos por um garçom exageradamente sorridente, mas isso me deixou contente, me distrair com sua alegria treinada foi a única maneira de não entrar em pânico quando Margô avisou que escolheria depois. Ela nunca escolhia depois, isso não cheirava bem. 

No instante em que minha batida de coco e o potinho de amendoim foram colocados em uma mesa até então formada por três pessoas silenciosas, Margô alegou que o celular estava no silencioso mas que havia alguém na linha. Sim, era o óbvio. Ela pegou a bolsa e saiu correndo fingindo atender o aparelho, mas eu sabia muito bem que ela estava apenas indo embora para forçar uma situação absurda com Fábio. 

E foi então que aquele diálogo aconteceu. “ele é divertido” ficou ecoando na minha cabeça e tudo o que eu queria era que ela voltasse, mesmo eu louca de vontade de enfiar a cara dela no pote de amendoim. 

Eu não ri da piada. Eu não sei como diabos ele poderia considerar aquilo engraçado. Disfarcei meu desconforto com um gole gigante de batida que me deixou tonta e mudei minha atenção para um telão ao fundo do bar passando clipes da Beyoncé. Eu não sei se ele percebeu ou não, mas seguiu falando bobagens contando apenas com alguns “ahans” meus e uma ou outra risadinha falsa. 

Pouco antes de completar uma hora que estava lá, concluí que Margô não voltaria. Tirei meu celular da bolsa e mandei uma mensagem para minha irmã pedindo que me ligasse; se ela pra sair fugida, que pelo menos a minha história fosse mais convincente. Ela o fez dois minutos depois; joguei uma nota de 10 na mesa, agarrei a bolsa e fiz sinal que atenderia o telefone na rua. 

Não voltei. 

Não sei dizer se me senti culpada por isso. Na minha adolescência esquisitona era comum o menino dizer que ia no banheiro e não voltar nunca mais, e duvido que qualquer um deles tenha perdido um segundo pensando no quanto eu fiquei chateada e insegura. Então dormi tranquila, mais cedo do que o normal sob efeito do álcool ingerido em alta velocidade, nem a lembrança que meus brincos ficaram no taxi que peguei pra voltar pra casa abalaram a paz de me ver segura em casa, longe de piadas infames e gente bem intencionada demais. 

Até que o celular tocou. Era Margô. Era a mensagem mais inacreditável que eu podia ter recebido na vida: “Eu e Fábio adoramos, vamos repetir amanhã?”. 

Desliguei o aparelho, acionei o despertador e me entreguei ao sono. Pelo visto, minha paz duraria muito pouco.

continua...

sábado, 22 de agosto de 2015

O artista não é louco

                Ser capaz de viver em fantasia é um privilégio reservado aos loucos, diriam uns. Não é verdade; creio ser possível que até os que se consideram os mais “normais” possam mergulhar em sonhos bons e projeções irreais de sua vida. Por que não?

                Tenho por hábito debater temas atuais pertencentes ao mundo real, e isso é parte da minha vida desde o mais antigo raiar da infância. Sempre busquei informação sobre os mais diversos assuntos e ouvir as mais diversas versões sobre um único fato. Entretanto, recentemente meu conhecimento de “vida real” foi colocado em dúvida mais de uma vez pela minha facilidade de criar um mundo novo, imaginário.

                Ora, não sejamos desonestos; não creio que seja assim tão surpreendente que um artista seja plenamente capaz de conhecer a realidade de forma profunda e embasada. Por sinal, quem acompanha meus trabalhos literários sabe que não produzo o gênero fantasia, que levo a realidade para a ficção, e jamais trouxe a ficção para a realidade.

                Talvez, por sinal, eu seja muito mais capaz de separar a realidade da fantasia que crio (no sentido de pessoas que não existem, e não de mundos inexistentes criados por mim) do que meus acusadores, exatamente porque cruzo o limite de ambos desde que me conheço por gente e conheço os caminhos como poucos. É muito fácil para um viajante saber em que traço da estrada começa a cidade do que para aqueles que sempre estiveram na cidade, sem conhecer com precisão suas fronteiras.

                Então você pode pensar que sou uma pessoa ressentida e que escrevo esse texto para reclamar da vida. Não te tiro a razão, tem uma semana a última acusação e isso bem martelando minha cabeça, por não ter sido a primeira vez. Mais de uma vez usaram um talento que eu tenho – e que deveria ser motivo de celebração – para me desqualificar enquanto cidadã, enquanto estudiosa, enquanto uma pessoa que sempre buscou um conhecimento social suficiente para compor uma opinião sem achismos ou sensos comuns.

                Enquanto vivo as madrugadas em visitas à ficção, vivo os dias no mundo real. Percorro 2km a pé até a faculdade diariamente, depois de um dia de trabalho lidando com pessoas e situações absolutamente reais. Observo bem o mundo ao meu redor e tenho contato com dezenas de pessoas e profissionais em nada relacionados à literatura, mas ao direito – leis, sociedade, política, VIDA REAL.

                Sim, é de me ofender profundamente que desqualifiquem opiniões embasadas sob o manto da minha produção literária – aquela que JAMAIS me tirou da realidade uma vez que sou artista e não portadora de esquizofrenia em um nível grave o bastante para pertencer a esse mundo somente o corpo. Alegar que os poucos minutos que tenho de tempo para produzir literatura me impedem de ter um conhecimento técnico-científico é sim ofensivo porque coloca em dúvida não apenas um esforço de uma vida inteira de estudos e pesquisas, como apaga da minha vida mais de 15h do meu dia.

                Resumir-me à minha literatura por si só não me é de fato ofensivo. Sou perdidamente apaixonada pela literatura e de minha vontade dedicaria de bom grado minha vida às histórias que crio. Mas não, minha vida de longe não é “só” isso.

                A desqualificação do debatedor é estratégia comum, embora baixa, em qualquer debate - na ausência de um contra-argumento, coloque em dúvida o debatedor – mas sim, me incomoda quando a desqualificação usa minha literatura como arma. Já fui chamada de mil coisas das quais inclusive achei graça por expor a incapacidade do “opositor” em manter um diálogo fincado em sua oposição a mim, ele se vê sem alternativas porque a única opção além da ofensa é concordar comigo.

                Sim, é comum. Confesso que já me vi nessa posição diversas vezes. Em algumas reagi com baixaria partindo para a agressão ao opositor, em outras refleti sobre o tema e, por consequência, repensei meu posicionamento. Mas quando a desqualificação puxa a literatura como argumento irrefutável de que não tenho condições de debater um tema de vida real, algo que me é muito caro – a literatura – torna-se uma arma, uma ofensa, uma agressão, o que torna o uso desse argumento duplamente ofensivo.

                A arte é seguidamente marginalizada. O artista é seguidamente tratado com desdém como se, por seu talento, fosse um tipo inferior de cidadão, ou até mesmo não fosse um cidadão. Isso ficou ainda mais claro quando, debatendo sobre uma arbitrária e nojenta proibição de intervenções artísticas em praça pública, o opositor argumentou que a “praça é para os cidadãos”. E nós, artistas, o que somos?

                O artista não é louco, o artista não é lixo. Arte não é luxo, não é bobagem. Arte salva vidas, projetos artísticos reduzem a criminalidade e não é à toa. Já estamos em 2015 e a arte existe desde que existe o homem; a arte, por sinal, é a maneira como as civilizações se perpetuam, são vistas, lembradas e estudadas mesmo quando extintas a milênios.


                A arte sobrevive. A arte não tem prazo de validade e não é efêmera. A arte VIVE e é imortal. Respeite a arte, respeite o artista, existe uma boa chance de esse artista que você trata com desdém ser lembrado para sempre .


terça-feira, 18 de agosto de 2015

Volta e meia - Parte 5


                Analú tinha 17 anos quando entrou em nossa vida. Jovem, pobre, abandonada pelo namorado, desamparada pela família, era o retrato exato de uma pessoa vulnerável.

                Matias já tinha me traído algumas vezes. Homem bonito, bem-sucedido, hierarquicamente superior às mulheres com quem trabalhava e encontrando a esposa só de vez em quando, é a fórmula do chifre. Quando nos casamos eu já sabia que ele não era fiel, mas pensava naquela máxima do “ele pode transar com você mas é a mim que ele abraça quando volta pra casa”.

                Eu até convivia bem com isso e confesso que não fui santa nesses quase 10 anos de um marido ausente – ei, eu também tenho desejos, ok? – mas Analú ultrapassou todos os limites.

                Matias não se envolvia emocionalmente com nenhuma delas. Nunca teve efetivamente um caso, eram apenas transas casuais e ele mesmo me confessava algumas. Me incomodava que ele tratasse suas transas com o mesmo entusiasmo com que falava de picanha, mas eu era a esposa traída, vê-lo tratando essas mulheres com desprezo me consolava. E assim fui empurrando quase 10 anos da minha vida até aquela quarta-feira em que Analú ligou pro celular dele, em prantos.

                Ele estava no banho e era comum eu atender o telefone, ele me gritar instruções para pais apavorados de dentro do chuveiro e eu retransmitir. Naquele dia, assim que percebeu atendida a ligação, Analú falou, e falou sem parar. Estava assustada, dizia que tinha medo do futuro e que ele tinha sido a melhor coisa que o aconteceu, que estava com medo da reação da família quando soubessem que ela se envolveu com o médico do seu bebê e que precisa dele mais perto porque ela não sabia mais o que fazer.

                Não a interrompi, deixei desabafar. Sua voz juvenil me encheu de desespero e, enquanto eu ouvia seu desabafo, me dei conta que Matias havia ultrapassado absolutamente todos os limites. Quando ela terminou, eu perguntei sua idade.

                Ao ouvir minha voz, ela gritou. Um grito desesperado, um grito de uma dor que eu não teria como descrever, mas ali soube que havia uma pessoa com a alma destroçada do outro lado da linha. Ela desligou. Eu liguei de volta e, no instante que ela atendeu, pedi que se acalmasse.

                Ela chorou alto, como uma criança implorando colo. Deixei que chorasse enquanto ouvia o chuveiro cessando. Matias saiu de toalha do banheiro e me flagrou ao seu telefone com uma solitária lágrima na lateral do meu rosto. Sem dizer nada, se sentou sobre minhas roupas na poltrona do quarto e esperou o desenrolar da história. Quando ela se acalmou, respondeu minha pergunta.

                - 17, senhora.

                - Bianca. Meu nome é Bianca, pode me chamar assim.

                - Desculpe, Bianca...

                - Você sabia que o Matias é casado?

                - Sim, eu sabia... me perdoa...

                - Você não me fez nada. Quem tem um compromisso comigo é ele. Quer me contar o que aconteceu?

                - Eu... eu... to com tanto medo... meu bebê nasceu prematuro e o Matias cuidou de nós...

                - E vocês se envolveram, é isso? – Matias não me olhava. Permanecia parado com a cabeça baixa. Sequer esboçou uma defesa.

                - É... eu... meu Deus, me perdoa...

                - Analú, né? Apareceu esse nome no visor. Você está precisando de ajuda, certo? O que você precisa? – Analú caiu em mais uma crise de choro. – Olha só, ele não vai ficar com você. Não quero te machucar, eu estou te dando a real. Matias, além de casado comigo, não perde uma oportunidade de um sexo casual, então por favor, não pense que você encontrou uma saída pros seus problemas, porque não é o caso.

                - Eu sei... meu pai me disse que uma vagabundinha como eu não encontra homem decente... o Matias jamais ficaria comigo.

                - O Matias jamais ficaria contigo não porque você não merece um homem decente, mas porque ele NÃO É um homem decente. Simples assim. De material, o que você precisa?

                - Eu preciso basicamente tudo... eu to num quartinho de favor, tenho só mais uma fralda, duas roupas pequenas... eu... eu não sei o que fazer...

                - Me dá seu endereço, eu vou levar algumas coisas pra você.

                Analú me deu o endereço, pediu mais uma vez perdão e desligamos. Matias seguia ali sentado sem sequer levantar a cabeça.

                - Uma garotinha, Matias?

                - Eu fui fraco...

                - VOCÊ FOI UM MONSTRO, MATIAS! UM MONSTRO!

                - Bianca, não exagera, foi uma transa, eu não tenho culpa se a garota gamou!

                - Tem sim. Tem MUITA culpa! A garota sozinha, abandonada por todo mundo, tendo uma gestação de merda, um parto difícil, um bebê prematuro, inexperiente e imatura, aparece um doutor maduro e bonitão dando atenção muito além do seu trabalho, esperava o que dela? É ÓBVIO que ela ia ceder e ainda te achar o homem mais fantástico do mundo! Você explorou a vulnerabilidade dela por sexo!

                - Ai, Bianca... – Foi a minha primeira reação enérgica que não despertou ira nele. Dessa vez até ele entendeu que havia passado dos limites. – E agora?

                - Traição eu suporto. Explorar vulnerabilidade de garotinha indefesa passa de todos os meus limites de tolerância, Matias.

                - É o fim?

                - É. É o fim.

                - Bianca... – Matias, imóvel, chorou. Eu troquei de roupa e saí para comprar os itens que Analú precisava. E então a conheci. Era sofrida, aparentava ser muito mais velha, todo seu histórico de abandono estava estampado em seu rosto e seu olhar envergonhado.

                Conheci o pequeno Matias – porque sim, ela batizou seu bebê com o nome do meu marido porque acreditou de coração que ele se importava com ela. Não consigo imaginar o tamanho da dor que essa garotinha sentiu quando descobriu que ele não ligava, não dava a mínima. Mas eu me importava, e deixei bem claro para ela que não ficaria desamparada. Meu coração sangrava ao saber que meu marido havia a usado, explorado sua dor, seu abandono, mas sozinha ela não ia ficar. Nem ela nem o pequeno xará do homem para quem eu havia dito “sim” no altar.

                Cheguei em casa duas horas depois e Matias fingia dormir. Quando deitei, ele me abraçou e eu afastei seu braço de mim. Estava com nojo, mas isso não duraria. Vivemos por mais de um mês debaixo do mesmo teto depois disso, e agíamos como se nada tivesse acontecido. O divórcio começou a ser legalmente tratado, mas vivíamos como casal e por várias vezes ambos duvidamos que o fim de fato aconteceria.

                Mas algo em mim se quebrou, o fim aconteceu e eu permaneço oscilando entre o amor que eu ainda sinto e o total desprezo pelo homem de merda com quem eu casei.

                Segue o baile, ainda terão outras valsas para dançar.

continua...

sábado, 15 de agosto de 2015

Erich em resumo

Conto premiado em 2009.

                Fomos crianças na mesma época, tínhamos somente 3 dias de diferença, mas parecia que tínhamos nascido em planetas diferentes. Eu o olhava as vezes e tinha inveja de sua normalidade. Para ele tudo parecia tão simples que eu me questionava o que havia de errado comigo. Tínhamos uns 6 anos quando o olhei de um jeito diferente. Ele era todo bonito, tinha aqueles cabelos cor fogo e os olhinhos verdes como os meus. Eu não precisei de muito tempo para entender que o amava, eu só não era capaz de entender de que forma me vinha esse amor.

                Éramos dois moleques que jogavam bola na rua num tempo em que isso ainda era possível na cidade grande. Eu jogava porque meu pai tinha grandes ilusões sobre seu único filho homem, enquanto invejava minhas irmãs, uma gêmea e outra mais velha, que podiam ficar dentro de casa com suas bonecas, sem machucar o joelho, sem morrer de medo de chorar. Mas os jogos tinham suas vantagens, ele fazia gol e me abraçava, esse era o melhor momento do meu dia, todos os dias.

                Tínhamos o mesmo nome composto, Erich Alexandre, a mãe dele gostou do meu nome e o registrou da mesma forma. Como sou mais velho, fiquei conhecido pelo primeiro e ele pelo segundo nome. Ter nomes iguais e sobrenomes parecidos tornou a nossa relação ainda mais divertida. Éramos dois meninos que não se desgrudavam, o ruivinho e o loirinho, com esmeraldas nos olhos, ele com sardas e eu com meus cílios longos que irritavam minhas irmãs na adolescência.

                Mas quis o destino que nossas vidas fossem separadas. Tínhamos 12 anos e eu sabia que era diferente dos outros meninos da escola. Ele me encantava muito mais do que as meninas, e enquanto nossos amigos esboçavam as primeiras tentativas de beijar da boca delas, eu me pegava distraído, perdido nas madeixas vermelhas que ele deixava crescer. Eu não tinha coragem de falar com ninguém, imaginei que a reação das pessoas não seria a melhor, e tinha medo de perder a companhia do meu amigo inseparável. Mesmo sem dizer uma palavra, foi isso que aconteceu. Sua família partiu e eu fiquei sem ele.

                Trocamos algumas cartas, mas nada podia se comparar às tardes de futebol, ou às vezes que conseguia sentir o cheiro de seu xampu enquanto ele falava das meninas da turma. Eu sentia falta dele como um amor perdido e me escondi do mundo. Eu tinha vergonha, vergonha por ser diferente, vergonha por amar o meu amigo de infância, vergonha por não conseguir beijar uma menina.

                Vinham as festinhas, eu começava a chamar a atenção com meu rosto delicado de quem se desenha para se tornar um homem pouco masculino, meus olhos verdes e meus cabelos loiros rebeldes. Não tardou para que os meninos começassem a pegar no meu pé, eu já nem conseguia disfarçar que não haveria nem menina nem mulher nesse mundo que seria tocada por mim.

                Com 15 anos minhas irmãs já desconfiavam que não teriam uma cunhada jamais, meu pai preferia não ver e eu preferia não mostrar. Eu tentava entender o lado deles, não é fácil para um pai aceitar que seu único filho homem... mexe com a tal honra masculina dele. Mas já era claro que eu não era um menino comum.

                 Estávamos perto do verão quando, acompanhado de amigas, encontrei aquele que me proporcionaria a certeza do que sou, e do que serei para sempre. Lembro que estávamos em um bar, tocava uma música ruim quando fui ao banheiro e vi que ele me seguiu. Gostei da ideia, ele parecia muito bonito de longe. O banheiro estava vazio, até porque o próprio bar não estava cheio. Ele se aproximou e, muito gentil, começou a conversar.

                - Eu o vi com umas meninas, alguma delas é sua garota? – Corei com o comentário, estava muito claro que ele saberia exatamente o que eu estava prestes a dizer.

                - Não, são somente amigas.

                - Eu sei, queria somente ter certeza. – Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele tocou meu rosto. Eu fechei os olhos, estava confuso, mas sabia que precisava viver aquilo para acalmar minhas dúvidas. Quando senti seus lábios encostando nos meus, quando senti o seu gosto da minha boca, senti meu coração se encher de coragem. Eu não era mais um garoto estranho, eu acabara de me descobrir, e decidi que jamais teria vergonha por jamais ter esquecido os cabelos cor de fogo do meu amigo de infância.

                Naquela semana mesmo, tendo beijado somente um rapaz em toda a minha vida, resolvi contar à minha família. Estava muito seguro, jamais havia permitido uma garota tocar em mim e havia apreciado o beijo dele, não poderia haver dúvidas. Não que eu esperasse qualquer reação efusiva da parte deles, mas jamais imaginei que minha mãe choraria mais do que se tivesse recebido a notícia da minha morte, nem que meu pai ficaria um mês sem falar comigo, e muito menos que a primeira coisa que ele me diria seria a convocação para visitar uma prostituta na semana seguinte.

                Bom, a visita não aconteceu, por força de minhas irmãs, que não permitiram, mas ninguém foi capaz de me salvar da surra que levei dos meninos do bairro depois que uma vizinha ouviu meu pai aos berros me chamando de “bicha”. As notícias corriam rápido por lá e não foi difícil para que me pegassem desprevenido, afinal, eu não era uma bicha, como meu pai meu chamou, eu era um homossexual, sem escândalos, sem trejeitos, eu era somente um menino que preferia meninos, simples assim.

                Acho interessante que os garotos se sentiram grandes machões vindo em um bando com mais ou menos 8 garotos contra um indefeso. Alguns ossos quebrados, cicatrizes e dias de hospital depois, meu pai, como todo bom pai, aceitou o filho gay, talvez pelo pânico de ver o jeito que fui deixado ao lado do campinho de futebol. Pouco mais de um mês depois do incidente, mudamos de casa, de bairro aliás, não podíamos continuar vivendo em um lugar onde as pessoas me olhavam como um criminoso ou um portador de alguma doença transmissível. E eu mudei de escola, porque mal voltei às aulas depois da surra e novas violências se desenharam com recados “simpáticos” e ameaças.

                Foi aí que deixei de me aceitar, deixei de me amar, porque onde quer que eu fosse, o preconceito insistia em me acompanhar. Aos 16 anos fui apresentado “à vida adulta” da forma mais brutal que consigo imaginar. Desisti de viver. Eu me sentia sozinho no mundo, vivendo e revivendo na minha cabeça cada ameaça, cada demonstração de desprezo, cada ofensa, e ainda tentando imaginar como estaria meu amigo de infância.

                Aos 17 anos eu o reencontrei. Eu oscilava entre a infelicidade extrema, o desejo de morrer, e a esperança de um futuro melhor. Eu já não sabia se tinha vergonha ou não de mim mesmo, eu não sabia o quanto era ou não digno de respeito. Era com freqüência tratado como inferior. Mas tudo isso ficou tão pequeno perto dos cabelos cor de fogo. Ele estava lindo, com cabelos longos e os olhos tão verdes quanto os meus. Fiquei imensamente feliz quando ele me reconheceu e correu na minha direção com aquele sorriso que me tira o fôlego.

                Com os cabelos ao vento, ele se jogou nos meus braços; era um abraço amistoso, mas eu senti o tempo parar enquanto me entorpecia em seu perfume e tocava as partes de seu corpo que a etiqueta permitia. Um beijo no rosto e o rubor tomou conta de mim. Passamos horas conversando, relembrando nossa infância, relatando nossas aventuras ao longo da juventude. Ele me contava suas aventuras com meninas e a cada nova história eu sentia como se uma faca me atravessasse o peito, eu tive certeza que passaria o resto da minha vida lamentando não poder ser uma mulher, a mulher que o teria para sempre.

                Mas o destino tem suas surpresas e, pouco mais de duas semanas depois do reencontro, fomos com nossas famílias a uma chácara, nos arredores da cidade. O tempo estava instável, mas insistimos em passear em uma área distante da casa, com uma cascata e um pequeno córrego. Falávamos todo tipo de futilidade quando começou uma chuva bastante forte, ele me puxou pelo braço para corrermos, poucos metros à frente fomos vítimas da lama, e eu caí sobre ele.

                A chuva era cada vez mais forte e as gotas do meu cabelo caíam em seu rosto. Eu senti que sua respiração ficou pesada e seu coração, como o meu, disparou, mas ele não esboçou qualquer reação. Por um impulso, resolvi arriscar e o beijei. Ele me abraçou com força durante o beijo, não deixando que me afastasse um centímetro sequer. Foi um beijo longo e apaixonado, foi muito além dos meus sonhos mais otimistas.

                Quando nos levantamos, seus cabelos estavam cobertos de lama. Sem dizer uma palavra, nos jogamos no córrego, já estávamos encharcados de qualquer forma. Nadando debaixo de chuva forte, ele tomou a iniciativa, me beijando com força, como se temesse que eu pudesse partir.

                - Não tinha certeza se não me odiaria por isso. – Comentei quando voltávamos para a casa, tempo depois.

                - Não te odiaria, eu tinha muita curiosidade de experimentar. Mas então você é mesmo gay? – Me perguntou, deixando-me surpreso e confuso.

                - Sim, sou, você não é?

                - Não, não sou. Como eu disse, só queria experimentar. – Naquele momento senti meu mundo desabar, depois de criar tudo o que é tipo de ilusão, depois de imaginar que entraríamos abraçados na casa avisando que formaríamos um casal a partir de então.

                Depois daquele dia começamos a nos falar cada vez menos, eu tinha certeza que meu destino de solidão e amor não correspondido estava selado. E tive que aceitar encontrá-lo nas poucas festas que fui sempre acompanhado de mulheres. Aquilo me partia o coração de tal modo que resolvi me fechar em casa, era melhor que encarar a dolorosa realidade.

                Dois dias depois do aniversário de 20 anos dele, ele me procurou, estava confuso, não sabia o que fazer, não sabia o que sentia. Ele estava sozinho em casa e pediu que eu fosse vê-lo. Eu fui sem ilusões, não queria mais me machucar. Bebemos um pouco, relembramos bons momentos e relembramos a tarde chuvosa da qual eu sabia cada detalhe. Ele sorriu, era o primeiro sorriso da noite, passou a mão nos meus cabelos e se aproximou do meu rosto.

                - Por favor, me perdoe por todos esses anos... – Falou baixo no meu ouvido, beijando suavemente meu rosto até alcançar a minha boca. Eu não ofereci resistência, mas tinha medo de me machucar mais ainda.

                Como um adolescente irresponsável, me deixei levar pelo vinho e pelo amor que ainda sentia por ele. Naquela noite nos amamos pela primeira vez. Era minha primeira noite de amor de verdade e a primeira vez que ele se entregava à sua realidade, que ele tanto insistia em negar. Quando acordei na manhã seguinte, ele estava sentado em uma cadeira, diante da cama; pensei em sorrir, mas ele não parecia feliz.

                - É melhor você ir agora. – Falou ele sem olhar para mim. Meu coração se partiu outra vez.
                - Aconteceu alguma coisa? – Perguntei incrédulo.

                - Como assim “aconteceu alguma coisa”? – Ele chorava. – Que pergunta idiota, Erich! Claro que aconteceu!   

                - Sim, Ale, eu sei bem o que aconteceu, eu pergunto se aconteceu algo errado.

                - Olha só. – Disse ele levantando-se e ficando de costas para mim. – Você é gay, mas eu não!

                - Vai falar de novo na curiosidade de experimentar? – Eu começava a ficar irritado.

                - Eu sei das coisas que te aconteceram, não quero isso pra mim.

                - Você não pode ir contra a sua natureza a vida toda, caramba!

                - Quer apostar?

                - Ah, legal, você acabou de admitir que a sua natureza é a mesma que a minha, você é gay e você gosta de mim! Vai fugir até quando? – Eu começava a gritar.

                - Isso é problema meu, vai embora!

                Eu não disse mais nada, peguei minhas roupas, me vesti o mais rápido que consegui e saí batendo a porta. Estava ainda mais irritado com a vida, o meu sonho podia ser real, ele era igual à mim e me amava, mas tinha medo, e eu não lhe tirava a razão, mas tudo o que eu queria era ser feliz ao lado do meu amor, por que era tão difícil tornar isso uma realidade?

                Nos afastamos novamente, terminei a faculdade e me joguei de cabeça no meu trabalho, lutando dia após dia para tira-lo da minha cabeça e do meu coração. Encontrava às vezes ele no campus, dessa vez sozinho, nunca mais o vi na companhia de mulheres. Ele me cumprimentava de longe, mas não vinha falar comigo, e eu fazia questão de ficar longe, eu não podia ser novamente a pessoa em que ele descarregava suas vontades reprimidas, aquilo já era demais para mim.

                Entretanto, depois dele, nunca mais conheci ninguém, eu sabia que não amaria mais ninguém como o amava, não me valia a pena arriscar aventuras que só me trariam mais sofrimento. Cheguei num ponto que meu pai quase acreditou que eu pudesse mudar de ideia, já que não levava rapazes para casa, mas o preconceito ao meu redor não deu a mesma trégua e o acesso irrestrito à internet me tornou alvo fácil. Eu não buscava namorado, mas me recusava a me esconder, a ter vergonha de ser quem sou. Não tem nada de errado com o meu jeito de amar, é amor tanto quanto qualquer outro, e meu coração estava tão partido quanto ficaria o coração de qualquer outra pessoa.

                Mas a vida é um ciclo, tudo tem volta, é só esperar o tempo certo para que isso aconteça. Não muito tempo atrás minha irmã abriu a porta e gritou meu nome. Fui à sala esperando qualquer coisa, menos o que estava por vir. Era ele com seus longos cabelos cor de fogo. Ignorando a presença da minha irmã, ele me beijou, ali mesmo, na sala, sem sequer se certificar de que não teria qualquer outra pessoa.

                - Acabo de assumir para minha família. Acabo de avisá-los que te amo e que farei o que for para você ser genro deles. – Disse ele, sorrindo, com as duas mãos ao redor do meu rosto.

                - Você disse que me ama? – Perguntei quase sem ar.

                - Sim, eu disse que te amo, Erich, porque eu te amo mesmo. E digo mais, eu sempre te amei, a vida toda, e agora estamos bem grandinhos, acho que com 27 anos tenho todo o direito de ser macho o suficiente para assumir que amo outro homem. – A cada poucas palavras, eu ganhava um novo beijo dele.

Naquela noite o apresentei como meu namorado à minha família. Meu pai foi o que ficou menos contente, minhas irmãs vibraram por me ver feliz pela primeira vez em anos, se não fosse a primeira vez na vida! Ele é filho único, o que dificultou um pouco mais as coisas e mais de uma vez tive que ouvir breves grosserias do meu sogro, me acusando sutilmente de ter desviado o filho dele do bom caminho.


                Mas quer saber? Eu nem imagino como vai ser o amanhã, só sei que hoje nós nos amamos o suficiente para termos certeza que nascemos um para o outro. A gente ainda não pode sair na rua como o casal apaixonado que somos, a sociedade é hipócrita demais para isso, mas estamos felizes, e não há nada mais importante que isso. Simples assim.