sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Navio

                De um lado, o navio fantasma o cerca sem medo, afinal, como combater um inimigo do qual somos incapazes de enxergar? E nós, de um navio real, completamente à deriva com motores apagados por falta de combustível, sabemos que estamos cercados.

                Nossos canais de comunicação foram sabotados por aquele paspalho que fugiu no único bote salva-vidas, e ainda nos mostrou a língua enquanto se afastava de nós em direção à costa. Confesso que desejei ardentemente que em seu caminho estivesse o navio fantasma e ele virasse a sobremesa dos tubarões, mas não, o miserável seguiu em segurança para comer maçãs fresquinhas em uma ilha qualquer.

                Então sabemos que estamos cercados, as bombas chegam de todo e qualquer lado sem que tenhamos qualquer chance de nos defender ou sequer se esquivar! E elas chegam abrindo imensos buracos em nosso casco. Nosso piso, como o chocolate, está aerado. Pulamos entre o que resta daqui e o que resta de lá. Alguns vão caindo ao fundo do casco onde as hélices os transformam em patê – com o perdão da imagem.

                Não vemos nada, não vemos de onde as imensas bolas de metal chegam, mas elas estão dispostas a nos transformar em pó.

                Quando nosso navio é virado em retalhos de madeira e metal, o oceano o engole.

                Coloco as mãos para cima – glub glub – sabendo em vão, se algum de nós ainda resta respirando não está assim melhor que eu. Glub blub – os dedos esticados.

                Glub.

                O breu.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Queima!

                Queima! Queima! Brada o povo diante da moça de longa túnica branca embebida em gasolina, ou qualquer dessas coisas fortes que a deixavam nauseada.

                Queima! Homens, mulheres e crianças num espetáculo de horror e fúria.

                Queima! Queima! Não há nada mais esperado que o fósforo riscado.

                Qual a acusação? Pergunta o forasteiro intrigado. O cidadão, com a tocha na mão, coça a cabeça. Sabe que eu nem sei?

                No tronco, as cordas deixam pouco espaço à respiração.

                Bruxa! Bruxa!

                As chamas logo crescem pra delírio e gozo da multidão. Mas tão dizendo por aí que não foi ela. Mas tem quem não faça ideia de como ela foi parar aí – fala intrigado alguém sem tochas.

                O público, em êxtase, vibra a cada grito de dor.

                Vem o silêncio quebrado apenas pelo trepidar das chamas. Menos uma! Menos uma o que? Ah, sei lá, alguma coisa deve ter feito.

                Não fez.

                O povo olha mais uma vez pra trás, nada resta além do cheiro de morte. Ah, era inocente? Paciência. Numa dessas a gente acerta.


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O túnel

                E então era uma vez um túnel.

                Longo, escuro, daquele tipo que sufoca, que a gente fica sem saber pra onde ir porque todos os lados são exatamente iguais: o completo breu.

                As paredes causam asco, nojo mesmo, vontade vomitar. Mas aí você lembra que as vezes nesse túnel tem algum andarilho de lanterna na mão. E você espera, cedo ou tarde, se o andarilho falhar, há de nascer o sol.

                Quantas horas ainda faltam pra nascer o sol?

                Quantas horas?

                Os dias inteiros passam sem respostas enquanto permaneço no túnel atenta à luz. Meus olhos já se acostumaram com o escuro, mas não meu coração.

                Não me deito, não descanso. Tenho nojo do que pode estar ao meu redor. Não toco em nada. Minhas pernas já não aguentam mais.

                Não tenho em minhas mãos nada que me possa ajudar. Sequer um salto para a liberdade do corpo eu posso dar. Já tentei caminhar, de um lado para o outro, sem sair do mesmo lugar.

                E por que não amanhece?

                Onde estão os andarilhos?

                O que fizeram com as lanternas?

                Choro baixinho, sem achar explicação.

                Enfim me ajoelho, estou totalmente entregue à escuridão.

                Fecho meus olhos e adormeço. Não sei se quero acordar. Quando abro eu estremeço porque permaneço no mesmo lugar. O escuro me abraça, nenhuma luz a me resgatar. O chão é úmido, sufocante, mas agora é meu lar.


                E lá fico até que os anjos se apiedem de mim.


sábado, 6 de fevereiro de 2016

Devaneios

                Vamos juntando as migalhas de tudo aquilo que nos restou para que um dia possamos dizer que pelo menos tentamos. Tentamos como loucos alcançar o céu, que sequer parecia assim tão distante, mas era.

                Fomos enganados por sonhos e planos que sequer fizemos.

                Dois errantes.

                Nessa estrada que a vida conduz, somos dois corredores de esporte nenhum. Dois atletas fora de forma, dois artistas sem talentos, empreendedores sem ideias. Mas ainda vamos de mãos dadas sem sequer saber para onde ir.

                E que caminhos são esses que se mostram tão cheios de buracos?

                Tem uns que chamam de vida, eu chamo de passagem, por onde enfrentarei meus fantasmas sem deixar de pensar em você nem por um minuto, porque todo mundo precisa de uma cura às suas dores.

                Já nem espero um beijo seu porque nada mundano combina como esse amor sublime que mantemos um pelo outro à distância.

                Fique no seu refúgio seguro que eu seguirei dançando na chuva, para que meus sonhos possam escorrer pelo corpo sem medo nem culpa. Recolho meus restos quando a água secar.


                Até lá me despeço com um beijo de longe, acenando de mansinho para quem saber um dia ser digna do seu amor.