sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

DOIS MIL E JÁ VAI TARDE

                Eu ia fazer um vídeo, como fiz ano passado, mas esse final de ano foi muito mais corrido do que eu previa e minhas olheiras já chegaram nos ombros. Vai textão mesmo.

                2016 foi um ano peculiar. Vejo pelas minhas redes sociais que ele não foi muito bem quisto pela maioria, embora eu conheça gente que realmente teve muito a comemorar. Bom, o ano ser bom ou ruim é muito relativo, mas, em termos gerais, o meu foi realmente uma bosta.

                Não vou entrar em grandes detalhes porque tem coisas privadas que devem permanecer privadas, mas devo dizer que o início do ano – precisamente entre fevereiro e março – foi o prefácio de um ano que me faria chorar muito. E eu chorei de fato.

                2016 foi o ano que eu cheguei (de novo) no fundo do poço financeiro – mas, ao contrário da primeira vez (no final de 2014), dessa vez eu tinha uma urgência que girava em torno dos 3 mil reais – meu instrumento de trabalho.

                Foi uma maratona de vaquinhas, acusações de golpe, exposições e bloqueios de gente que eu admirava, bem como freelas furados e muita expectativa não concretizada. Enquanto tive as vaquinhas abertas, lia diariamente indiretas sobre golpistas no facebook, curtia a maioria porque eu não imaginava que podiam ser pra mim, afinal, eu não sou golpista, fui de total transparência com cada pessoa que doou pras minhas vaquinhas. Numa dessas, uma pessoa que eu gostava muito me denunciou e, sem nenhum direito de resposta, me bloqueou.

                Claro que tenho coisas bem mais relevantes pra lembrar, relembro a paladina da moral e da justiça que me acusou injustamente e me privou de qualquer direito de resposta porque é algo que eu quero que realmente fiquei com 2016; não quero levar essa frustração para o ano que vou dar um passo além na minha carreira literária. 2017 não a merece, e eu também não. Vade retro.

                2016 foi o ano do golpe. Um golpe coletivo, completo. Um golpe global. 2016 foi o ano que eu fugi do direito porque a constituição e o papel higiênico passaram a ter a mesma utilidade. Foi o ano que sofri uma pressão absurda pra me tornar massa de manobra e cuja minha recusa me custou muito caro. Foi o ano que fui acusada de golpista, de vagabunda, de mamadora nas tetas do governo. Que minha página – na época com pouco mais de 2 mil curtidores – foi atacada por eu simplesmente ser artista.

                Não foi um ano para amadores. Foi um ano que tomei café com o capeta por 5 semanas e recebi pelo correio uma colônia de fungos de uma amiga numa tentativa de interromper um ciclo de 3 meses doente (esses fungos aumentam a imunidade). Ciclo que me acompanhará até março de 2017 quando terminarei de pagar o antibiótico.

                Mas também foi o ano em que nasceu Histórias de Minha Morte, cuja publicação só se tornou possível porque, apesar das acusações de golpe, os doadores da minha primeira vaquinha contribuíram para a contratação de um produtor cultural. Foi o ano que a Editora Alicanto entrou na minha vida e resgatou o Depois de Tudo – até então condenado à morte. Também foi o ano que surgiu a Macabéa, já quase nos 45 do segundo tempo – e essa é uma novidade que contarei melhor depois.

                Nesse ano aparentemente meio macabro, com tantas perdas e tragédias que nos levaram às lágrimas, também conheci muita gente que fez um esforço colossal pra não me deixar cair. Fui exposta algumas vezes e contei sempre com um exército de bem feitores movendo mundos pra me ajudar.

                Ganhei cicatrizes sim, mas ganhei amigos que eu não esperava. Tive sim minha dose de frustração, fui enganada e ludibriada por cliente de freela, mas no saldo final – apesar de tudo – ainda consegui comprar o meu instrumento de trabalho e garantir mais uns anos de literatura pela frente.

                2016 foi o ano que criei o Personal Versus e descobri que existe sim espaço para a poesia no mundo. Personal Versus não foi apenas uma ideia inédita e – modéstia a parte – brilhante; foi meu resgate, minha quebra de paradigmas, foi o que me fez parar de questionar minha literatura depois de um ano de muitas derrotas – algumas bem dolorosas. Aliás, não foi, é, porque em 2017 vou fortalecer ainda mais o serviço porque toda hora é hora de poesia.

                Num saldo geral, foram 5 semanas no inferno, 3 meses doente, 70 dias sob tortura psicológica, mais de 15 derrotas em concursos e um semestre inteiro frequentando um curso que eu não queria mais de jeito nenhum. Apesar disso tudo, eu termino 2016 trabalhando loucamente para os projetos literários que se concretizarão em 2017 e com uma perspectiva que eu não tinha mais há anos (sim, tem mais novidade que eu ainda não contei).

                Mas principalmente, depois de um ano tão doloroso e difícil de enfrentar, cheguei em seus últimos dias mais madura do que nunca. Descobri uma beleza que eu desconhecia em mim, entendi meu caminho literário, encontrei as janelas que se abrem quando as portas se fecham, me desprendi de gente que não presta e conheci centenas de pessoas que vieram pra ficar.

                Quer saber? Talvez 2016 não tenha sido, em geral, um ano tãããããão ruim assim. Talvez ele tenha me ensinado na marra a enxergar o copo meio cheio porque eu precisei me prender nas pequenas vitórias depois das grandes derrotas. Meu psicólogo que me disse, na nossa última sessão de 2016: parabéns por não apenas sobreviver a esse ano, mas conseguir algumas boas vitórias nele.

                É isso, eu venci 2016. Ele me derrubou mais de uma vez, mas eu o venci. A vantagem de chegar ao fundo do poço é que, lá de baixo, a gente só tem a opção de olhar pra cima.

                Que todos vocês, queridos leitores, tenham também conquistas e crescimentos a lembrar e guardar desse ano tão difícil. Precisaremos estar fortes para o ano que chega agora, e eu espero que a gente se encontre por lá.
                FELIZ ANO NOVO!




domingo, 20 de novembro de 2016

Dia de Leandra*

                Criei Leandra em março de 2016. Mas Leandra não nasceu da noite pro dia; Leandra, de alguma forma, já habitava em minha mente há muito tempo.

                Nasci e fui criada na serra gaúcha, terra de imigração italiana com total predominância branca, por isso, de certa forma, era comum que nossa convivência fosse quase que exclusiva com gente branca. Porém, as pessoas negras sempre existiram e sua exclusão se repetia por aqui.

                Como gordinha na infância (obesa hoje), fui eu a rejeitada da turma. Nesse meu ciclo de rejeição conheci a única menina negra da escola. Eu não tinha a noção exata da discriminação que ela sofria, fui entender depois de adulta que éramos ambas rejeitadas, até então eu acreditava que ela não tinha problemas em ser vista com a gorda puramente por caridade.

                Certa feita testemunhei discriminação pública daquela menina por quem eu nutria um carinho gigantesco, e foi ali que Leandra começou a nascer.

                Leandra é o resultado de muitas e muitas horas fazendo o que todos deveriam fazer: escutando e aprendendo com a vivência de quem sabe, na pele, o que é ser vítima de racismo. Eu, branca, jamais saberei, mas me despi de mim mesma enquanto Leandra contava sua história.

                É dela a caminhada. Leandra não sou eu, ela é dona de sua própria história e eu seu instrumento. É o resultado de anos de escuta, aprendizado, de reconhecimento do meu lugar na luta contra o racismo: na linha de desconstrução.

                Hoje, dia da consciência negra, homenageio Leandra como a soma de tantas histórias de dor e de luta que me circulam entre tantas mulheres e homens que já nascem precisando lutar pra sobreviver. Todas essas vozes me ensinam diariamente preciosas lições e sua dor transformou Leandra de uma simples criação à personagem mais complexa que já criei.

                Às mulheres negras da minha convivência e a tantas outras que ainda quero ter a honra de conhecer: vocês são tudo o que Leandra lutou para ser.

                Minha reverência, admiração e meu respeito.

A ilustração está assinada pelo artista, mas não consegui identificar o nome pra citar aqui

*Leandra é a personagem central e narradora do livro Histórias de Minha Morte, com lançamento previsto para abril de 2017.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Fluffy e Pigmeia

            Congresso, aquela bagunça, gente para tudo o que é lado, cadeiras amontoadas, saquinhos de salgadinhos jogados pelo chão, refrigerante derramado e até chiclete em cima de banco. Êta, gente porca!, pensei eu ao sentar em um chiclete. Saí correndo para ver se tirava aquela bola rosa da minha bunda morrendo de vergonha. Nunca mais sento sem olhar! Vai que tem um alfinete! Ainda saí no lucro.
            Fila no banheiro, normal para um local onde umas dez mil pessoas se esmagam. E tô lá eu, segurando um papel nas costas na esperança de esconder o troço e evitar um mico maior, de repente surge um rapaz... rapaz não, um homem (e que homem), com um saco de gelo na mão.
            - Desculpe a indiscrição, mas vendo o seu problema, peguei gelo que ajuda na remoção de chiclete.
            - Safado, você olhou para a minha bu... – fui subitamente interrompida pelo meu coração que quase saiu pela boca quando olhei-o nos olhos. Que olhos! Que sorriso! Aquilo não era um homem, era um monumento!
            - Desculpe, você tem toda a razão, pelo menos aproveite o gelo.
            - Não, eu é que devo desculpas, você estava tentando me ajudar e eu sendo grosseira desse jeito.
            - Imagine, pegue o gelo e não se preocupe, não deve ser muito bom ter um chiclete colado numa região dessas.
            Peguei o saco de gelo enquanto a beldade já ia escapando. Ai meu Deus, o que eu faço prá segurar o homem, pensa rápido, pensa rápido... já sei!!!!!!
            - Me ajuda? – Ainda não sei como foi que tive cara de pau de dizer aquilo, só sei que tremia feito vara de bambu. O cara ficou me olhando e achando engraçado porque eu realmente queria ser um daqueles bichos que enfia a cara na terra. De onde foi que eu tirei coragem? Pobre rapaz, seria ainda pior para ele, ficar agachado passando gelo na minha bunda. Espero que não me dê gazes.... hahahahaha.
            - Não esperava ouvir isso. Tudo bem, eu ajudo, mas tenho uma imagem a zelar, é melhor irmos para um lugar menos movimentado.
            - Peraí! Também tenho uma imagem a zelar e sentar no chiclete já superou o limite de micos do dia! Você quer que eu fique passeando com esse troço rosa num ponto tão estratégico?? – Ai, se arrependimento matasse, o cara não tinha nada a ver, o problema era meu e eu disse isso! Burra, burra, burra! Espero que o cara não tenha um blog, se tiver, é melhor eu me lembrar de não dizer meu nome...
            - Tudo bem, eu sigo atrás de você e ninguém vai ver, pode ser? Já que vou tirar esse chiclete da sua bunda, seria interessante saber seu nome.
            - Você tem um blog? – De novo, êta, boca! Tenho que aprender a calar a boca ou pensar mais vezes antes de falar.
            - Hein? – Coitado, não entendeu nada....
            - Um blog, uma espécie de diário na internet.
            - Eu sei o que é um blog, mas o que isso tem a ver com seu nome?
            - Você tem ou não tem?
            - Não, por quê?
            - Eva.
            - O quê?
            - Eva, meu nome, Eva!
            - Paulo, prazer.
            - Paulo Prazer?
            - Não, Paulo, vírgula, prazer, em conhecer você.
            - Ah, foi mal.
            - Vamos logo, estamos perdendo a palestra.
            - Onde vamos?
            - Pensei nas salas do segundo andar, tem duas que sempre ficam vazias.
            - Ahá, andou levando garotas prá lá?
            - Não, hoje é a primeira vez que uma menina me pede ajuda pra tirar um chiclete da bunda! – Cachorro! Agora mesmo é que não penso duas vezes antes de abrir a boca!
            - Eu pedi no fim, se você não tivesse aparecido com o gelo, nada disso teria acontecido! Culpa sua!
            - Ok, culpa minha, toma o gelo e vire-se! Vou para a palestra, Eva! – Droga, droga! O cara tava indo de novo...
            - Tá, desculpe, tenho o hábito de falar antes de pensar. Foi mal, Paulo.
             Para minha sorte ele só fez cara feia (modo de dizer, lindo demais para conseguir fazer cara feia) e voltou na minha direção.
            - Vamos então, menina rebelde!
                                   *                                 *                                 *
            Dia seguinte, roupa limpa. Inesquecível nós dois sozinhos na sala de cima, eu deitada no sofá enquanto ele esfregava o gelo. Claro que o comentário dele sobre a flacidez da minha bunda não meu deixou muito contente, mas não tinha do que reclamar. Bom, último dia do congresso, cansaço total.
            Primeira palestra da manhã, aquele tumulto. Cheguei atrasada com um copo de café, já gelado na mão. Um lugar vago, lá na frente, bem no meio, que trabalheira. Pra piorar, quando eu já chegava perto do lugar, mais precisamente do lado, tive a infeliz ideia de olhar o relógio, e lá se foi meu café, no colo do rapaz ao lado...
            - Eva!? – Putz, era o Paulo, com uma linda mancha de café!
            - Paulo... foi mal...
            - Muito mal, garota desastrada! – Ele ficou brabo mesmo... coitadinho... – Vem comigo. – Ele levantou e me puxou pelo braço.
            - Para, Paulo, eu não vou sair!
            - Ah, vai sim!
            Quase entrei em pânico! Céus, ele é violento, praticamente me arrastou para fora do auditório com um ar de raiva que nunca tinha visto igual. E ainda achando que eu fiz de propósito.
            - Eva! Maldita hora que eu resolvi te ajudar! Eu daria minha vida para não ter te conhecido, tá bom?
            - Foi só um café Paulo! Eu te dou uma camisa nova! Desculpe... foi sem querer – Ah, eu sabia que as aulas de teatro seriam úteis, fiz uma forcinha e lá estava a primeira lágrima escorrendo pelo meu rosto.
            - Tá, não vai chorar agora. Desculpe a grosseria, mas essa camisa tem valor sentimental, presente da minha namorada... – Pronto, acabou a encenação. Namorada? A lágrima secou e quase gritei “bem feito”. – E ela deu pouco antes de ir para um intercâmbio de um ano...
            - Não estou interessada em saber da sua vida, me deixa em paz! – Saí correndo, ele não era pra mim, mesmo, certamente a namorada dele devia ser um mulherão e não um pigmeu como eu, lastimável.
                                   *                                 *                                 *
            “Pigmeia entra na sala”. Chat da internet, parece ridículo, mas pelo menos passa o tempo, tudo tem seu lado positivo. Nesses dias tão monótonos de férias, ajuda. Esses dias lembrei do Paulo, depois que eu saí correndo, só vi ele de longe mais uma vez, já faz mais de três meses que acabou o evento.
            “Fluffy fala com Pigmeia: oi, pqna, quer tc?” – Que simpático, Fluffy, deve ser fofinho! Só o que eu odeio é a mania de engolir letras, porque não escreve “pequena”? Não é tão difícil! Mas até que a conversa fluiu numa boa, ele até me deu o endereço do blog dele e marcamos um encontro.
            Na véspera do encontro lembrei do blog, não visitei ainda, talvez tenha uma foto dele, vai que é bonito! Chiclete era o nome do blog, como eu fui tão burra de não desconfiar! Eva otária! Era ele, cretino, cachorro! O Paulo montou um blog até com explicações anatômicas sobre o local onde o chiclete ficou colado! E ainda teve a coragem de colocar:
            “Este blog na verdade foi uma ideia de Eva, a moça do chiclete, que apesar de ser extremamente compulsiva nas palavras que usa, soube usar o raciocínio no momento em que, acidentalmente, sugeriu este blog. E digo acidentalmente porque estou plenamente certo que detendo todas as suas capacidades mentais, ela não teria condições de ter ideia tão brilhante. Não estou aqui afirmando sua ignorância, mas afirmando que ela não seria suficientemente louca de sugerir o presente espaço em sã consciência. Mesmo assim, caso ela venha um dia a visitar esse espaço, obrigado, Eva, por proporcionar, do seu jeito, esse espaço de tamanha diversão para mim e demais internautas. Bj, Paulo”.
            Ah, mas o coitado não perde por esperar, eu tenho uma carta na manga. Fluffy! Só pode ser broxa! O problema todo é que os olhos dele acabam comigo, não consigo brigar com alguém de olhos azuis... e sorriso angelical... e porte de homem maduro com cabelos negros num corte rebelde... CHEGA EVA! O cara é um canalha, vai ter que ter troco.                                     *                                 *                                 *
            Copo de café na mão, tudo pronto, lá vem Paulo todo contente para o encontro com a pigmeia, chegou a dar pena. Respiro fundo.
            - Meu Deus, desculpe! – E foi-se mais um copo de café! Hahahaha
            - Eva? – A cara de surpresa foi espetacular!
            - Paulo? Nossa, que desastre... desculpe...
            - Tudo bem, deixa assim, é só uma camisa. Como você está? Faz tanto tempo! – Ai, minha consciência, essa doeu...
            - Vivendo, né!? E você?
            - Eu... tô solteiro, minha namorada arranjou um austríaco halterofilista....
            - Puxa, que pena, lamento.
            - Eu não, conheci uma menina pela internet, um doce, vim aqui conhecê-la ao vivo. Sabe que eu gostaria até que fosse você, tô muito nervoso e sendo você seria mais fácil de desenvolver uma conversa! – Ai, se arrependimento matasse... ele tá feliz em me ver! Era algo que eu não esperava.... – A vantagem de ser outra pessoa é que ela pode se uma deusa, carne fresca! – Cachorro, e eu cheguei a ficar com peso na consciência...
            - Boa sorte então! E passar bem! – Toda cheia de mim, empinei o nariz e saí sem olhar para trás, agora sim estava furiosa. Quando eu tava na esquina lembrei do blog e voltei. – Escuta aqui, Paulo, quem você pensa que é para colocar aquele bagulho na internet!? Você me ofendeu! Não tinha esse direito, por mais que eu tenha agido errado com as grosserias do chiclete no congresso, não fui tão agressiva, e o café foi puramente acidental!
            - Como esse de agora, pigmeia? – Choque, o chão saiu de baixo dos meus pés...
            - Você sabe...
            - Claro que eu sei, Eva, não sou tão idiota! Você me escreveu sua biografia naquele chat, lógico que eu percebi que era você! E vim de roupa velha porque achei que você ficaria furiosinha com o meu blog.
            - É essa imagem que você tem de mim? Uma menina histérica que derrama café quando fica braba?
            - Sim... essa é a imagem que você me passou, desculpe...
            - Você está errado, Paulo! Você não me conhece, tá!? – Agora não é encenação, eu chorei de verdade. – O primeiro café foi um acidente, eu tropecei e caiu o café em você...
            - Desculpe interromper seus lamentos, mas essa não é a verdade, você não tropeçou, eu estava observando você, você simplesmente virou o café em mim. – Ele tinha um pouco de razão, eu lembro que não tropecei, eu fui olhar o relógio, que tinha passado para o lado de dentro do pulso, ou senão teria virado o café em mim mesma. Mas ele não ia acreditar e nem tinha razão pra isso, ele não me conhece mesmo.
            - Tá, você tem razão, mas juro que não foi proposital, fui olhar o relógio. Nem tinha visto que era você... sou desastrada mesmo, sou um caos... – A essa altura eu já parecia um bebê, que escândalo! O fato renderia horas de reflexão sentindo-me uma legítima idiota.
            - Tá, sem dramas, para de chorar que tá todo mundo olhando. Mas realmente acreditei que tinha sido uma vingança sua por causa do comentário sobre a sua bunda.
            - Tá certo que até que você merecia, mas não queria estragar sua roupa de valor sentimental, nem parecer que me abalou o seu comentário, afinal, tem quem goste! Mas no fim te fiz um favor, estraguei a blusa da safada que te trocou pelo halterofilista!
            - Bom... eu não sou perfeito. – Ih, ele baixou a cabeça e ficou vermelho, alerta, tem algo de errado!
            - O que foi?? Fala, fala!
            - Calma! E grita baixo! A verdade é que não tinha namorada na época, e a roupa não tinha valor sentimental, falei aquilo porque achei que tinha sido proposital e queria deixar você arrependida do seu ato!
            - E conseguiu, acabo de me arrepender de não ter feito de propósito mesmo! Agora eu não entendo, você fica furioso comigo, jura que não quer me ver nem banhada a ouro...
            - Opa, eu nunca disse isso, Eva!
            - Não me interrompe! Continuando, depois de me odiar acima de tudo você ainda quer se encontrar comigo? Se você sabia que era eu no chat, porque fez questão de marcar esse encontro?
            - Jamais te odiei, não fale asneira....
            - Vamos, tire a máscara, você quer aprontar comigo, faça logo!
            - Agora você não me interrompe! – A gritaria chamou a atenção das pessoas que passavam na rua, meu Deus, que mico, nós dois aos berros na frente de uma cafeteria no centro da cidade... – Não quero aprontar nada com você, porque eu já o fiz! No dia que você sentou no chiclete, fui eu que coloque o chiclete na sua cadeira. Tá certo que a culpa não é só minha, foi imprudência sua sentar sem olhar, mas caiu direitinho no meu truque, arranjei uma desculpa para olha a sua bunda e foi melhor ainda quando você me pediu ajuda e eu pude apalpá-la!
            Fiquei completamente sem reação, qualquer um ficaria, confessem, só que o meu problema não era nem o fato de ele estar revelando que todo aquele meu constrangimento no congresso foi proposital, o problema era ele estar falando aos berros que queria apalpar minha bunda na frente de umas 50 pessoas que nos cercavam. Pensa rápido, estúpida, preciso de uma boa resposta, nem que seja só pela minha autoafirmação e sair por cima diante do público.
            - Você queria apalpar minha bunda, é seu cachorro! Pois eu também quero apalpar a sua! – Xxiii, péssima ideia... a cara dele e do público foi de pena de mim, “que menininha idiota, deve ter só dois neurônios na cuca...”. Que ódio, porque eu tenho que ser assim! Pensa rápido de novo, só tem um jeito de sair dessa.
            - Eva... não entendi...
            - Cala a boca e me beija! – Me escapei bem, muito bem!
            - Que isso????
            - Um beijo, não notou? Paulo, acabei de “tocar a sua sineta” com a minha língua!
            - Dããã, isso eu notei, flor, mas quem te deu essa liberdade?
            - Você está me dando indiretas faz tempo! Agora vem com essa! Ainda bem que eu nem gostei, você parece um boneco de borracha, péssimo beijo!
            - “Cala a boca e me beija”, essa vai pro blog! – Ai, ele provocou!
            - Seu miserável, te odeio! ODEIO! Nunca mais cruze o meu caminho, esqueça que eu existo!
            - Sem problemas, não quero mesmo uma mulher neurótica na minha vida, que faz tudo errado e fala sem pensar!
            - Ótimo, estamos de comum acordo, porque também não quero um homem que dá um jeito de colar um chiclete na minha bunda só para passar a mão! Safado tarado, se você fez isso sem me conhecer, imagina se me conhecesse!
            - Justamente! Fiz porque não te conhecia, se te conhecesse, faria questão de manter distância!
            - Mentira! Tanto é que marcou um encontro sabendo que a pigmeia era eu! E quer saber do que mais, você certamente é um broxa frustrado, sempre engomado e usa o nick de fluffy na internet. Macho você não é!
            - Não ando engomado, eu simplesmente tenho bom gosto! O Fluffy foi porque entrei no chat só para me divertir, não procuro namorada na internet, me garanto ao vivo, você que o diga! Não se controlou e me agarrou!
            - Brooooxa! – Ah, toquei no ponto! 1 a 0 prá mim!!! Finalmente!!!
            Dessa vez foi ele que me pegou de jeito. Ai que homem formidável, que beijo, que boca, que hálito, que braços!
            - Me solta, seu porco imundo, leva esse bafo de onça pro diabo que te carregue. Adeus, Paulo, espero nunca mais te encontrar!
            - Quer saber? Também te odeio e quero distância de você!
                                   *                                 *                                 *
            - Paulo, cuidado! – Dessa vez foi ele que quase estragou tudo.
            - Desculpe Eva, foi sem querer, sorte que não chegou a pingar em você! Se fosse o contrário certamente eu entraria na igreja ensopado de café!
            - Cala a boca, cachorro! Acontece que eu estou de vestido branco!
            - Não diga! Não sabia que noivas se vestiam de branco e, levando em consideração que estou sem óculos, nem percebi que você estava de branco!
            - Você não usa óculos!
            - Eu sei, baby.
            - Ai, seu... seu... eu te odeio!
            - Eu também!
            Descemos do carro, um de cada lado e entramos na igreja sem olhar um para o outro, mas nenhum dos dois era louco de viver sem o outro, o “sim” foi inevitável.
            - Te amo, Pigmeia!
            - Te amo também, Fluffy... mas você tem que concordar comigo que esse nick é coisa de broxa!
            - Vai começar de novo, Eva, nem na lua de mel eu não escapo da tua mania de falar sem pensar!
            - Cala a boca, Paulo! Não enche!
            Isso foi ao mesmo tempo que ele me jurou que era inocente do lance do chiclete, que assumiu a culpa pra me provocar. Entre um cutucão e outro, ainda fomos felizes para sempre... nosso ódio cruzou a barreira e rendeu dois filhos, umas quatro toneladas de chicletes e uns trinta mil litros de café.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ah, meu amor!

Eu cruzei mais do que oceanos para te encontrar. Eu cruzei vidas.

Das lágrimas que te fiz derramar no passado, transformei nos metros que me propus a atravessar entre dimensões para poder enfim estar ao teu lado. Eu enfrentaria o mundo outra vez pela chance de ver, mesmo que de longe, teus lábios no formato de um sorriso.

Ah, meu amor...

Dos séculos que cruzamos entre olhares, beijos e desencontros, sinto-me como parte de ti como se jamais houvesse o destino nos separado. Nada mais puro do que um amor que se propõe eterno dentro do que a própria eternidade nos permite.

Ah, meu amor...

Intactos ficarão meus desejos de te amar e de estar ao teu lado mesmo que a própria vida encontre seu fim, para que então possamos ser um só como nem as vidas e mortes foram capazes de tirar de nós, porque duas metades cedo ou tarde se encontram.

Então, meu amor...

Perdoo tua insolência de recusar meus braços, meu corpo e minha alma enquanto ainda não tens condições de me perdoar pelas dores que te causei acreditando ser o melhor pra ti, porque nem nessa, nem em outras existências eu seria capaz de ter ferir se a minha humanidade não tivesse sido suficientemente tola para permitir tua dor.

Já nem me importam mais quantas existências teremos a compartilhar, te amarei em todas elas com a mesma força com que te amo a cada amanhecer, a cada vez que teu sorriso me toma a mente e eu me lembro que o destino mais uma vez nos colocou no caminho um do outro.

Nada pode separar o que foi feito para ser eterno.


sábado, 22 de outubro de 2016

MEMÓRIAS DO VASO DA SALA

Nasci cerâmica. Não qualquer cerâmica. Coisa fina, com motivos orientais, branco perolado com detalhes em ouro falso. Sim, falso, né, quem tem dinheiro pra colocar na sala um vaso breguíssimo de ouro de verdade?
Mas enfim. Meu lugar era ali no anexo da entrada, junto ao... ao... àquele móvel com um espelho que tem um nome fresco e que o dono da casa usa pra ajeitar aquela gravata borboleta ridícula.
Ficava ali parado, com um monte de folha seca e flor de borracha dentro. Acho ótimo, pela atenção que me davam em um mês eu deixava de ser vaso pra ser túmulo.
Bom mesmo era quando vinha visita. Uma ou outra me achava gatão, comentava a delicadeza de meus traços e o talento de quem pintou os desenhos, sem saber que era uma estampa pré-pronta registrada com spray lá da 25. Família rica sim. No facebook, porque na vida real o IPTU tava atrasado que eu sei.
O fato é que o imbecil do filho desse pobre metido à elite com a gravata borboleta resolveu jogar futebol dentro daquele apartamento pouco maior que um ovo e é óbvio que quem tomou no cu fui eu.
Lá foi ele com a cola bastão que ele usa pra fazer mural de mulher pelada na pocilga que ele chama de quarto e foi juntando os pedaços. Por óbvio aquela anta bípede não entende os minimalismos dos detalhes da minha estampa e me transformou numa obra póstuma do Picasso, só que sem o talento do artista.
Tava lá eu, virado numa releitura de Frank, o Stein, e minha flores de borracha.
Aproveitei que o único talento do pirralho é encher o saco e me impulsionei por entre as falhas da colagem.
Virei picadinho.
Jogado no lixo, como todo bom vaso vagabundo, fui diluindo com a chuva e virando água suja pelas ruas da cidade. Pelo menos a pintura de ouro simulado saiu de mim pra sempre. Água suja sim, brega jamais.
Hoje, quebrado, diluído, enlameado, me sinto alma livre. Não sou vaso, não sou nada. Sou corrente.




terça-feira, 4 de outubro de 2016

A noite

Já nascia o sol no Planalto Central.
Eu permanecia sentada no gramado onde estivera nas últimas duas horas. Luca já não estava mais lá quando os primeiros raios de sol iluminavam os prédios que eu tanto via na TV de forma a deixa-los ainda mais imponentes pelas sombras que produziam. Eu nunca pensei que teria medo de um apanhado de concreto e vidraças, e no entanto, eu tinha dificuldade de parar de tremer.
A quem vinha de tão longe como eu, Brasília soava ameaçadora com seu ar seco e seus intermináveis quarteirões. Lembro-me que ri quando pensei na ironia de chegar de avião em uma cidade curiosamente no mesmo formato. Agora essa piada boba tinha perdido a graça.
Eu não sabia onde Luca estava. Não fazia a menor ideia de onde ele estaria nem há quanto tempo não estava mais lá. Foi quando o sol me encontrou que eu finalmente consegui chorar.
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- Taby, quando você chegar, te levo na rodoviária!
Lembro de achar que Luca tinha ficado louco, já que eu chegaria de avião. Foram uns 5 minutos de explicações até eu entender que ele me levaria lá para comer pastel, e que isso era um programa comum entre brasilienses.
Luca também não era de lá; vivia na Ceilândia há pouco mais de um ano, vindo do interior do Mato Grosso onde eu, gaúcha, o conheci numa viagem organizada pela minha faculdade. Eu estava apaixonada por ele quando ele me convidou para uma noite em Brasília. A princípio entendi que seria um encontro romântico, até descobrir que a ideia dele era uma noite alucinada pelas ruas da capital federal.
Achei graça, um pouco bobo por me lembrar os títulos dos filmes oitentistas da sessão da tarde, mas eu não me importava com nada, eu só queria estar com Luca.
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Eu não me movia. Via turistas se aproximando, pessoas arrumando piquenique enquanto o calor seco de Brasília me feria as narinas. Eu me sentia suja, sabia que havia sangue seco estampando minha pele quando pessoas estranhas se colocaram ao meu redor.
Ouvia números soltos e letras que lembravam os estranhos nomes de ruas que Luca me contava; lembro que ria disso porque, em todas as minhas andanças, jamais tinha conhecido uma cidade com nomes tão estranhos.
Por mais que eu não lembrasse bem o que tinha acontecido, mas sabia que a lembrança, assim que voltasse, me machucaria muito porque eu tremia sem parar, e não era de frio. Eu sentia que o medo tinha impregnado em meus ossos.
            - Onde... onde estou? – Gaguejei.
            - No Planalto Central, moça. Está tudo bem?
            Sim, eu sabia que estava lá, eu conseguia enxergar a rampa que eu sempre via na televisão, mas não era essa minha pergunta.
            - Onde estou? – Repeti
            - Moça, você está no Planalto Central, acabei de lhe dizer.
            - Vocês... são reais? – Deviam ser umas 5 ou 6 pessoas, o sol ofuscava minha visão enquanto eu lutava contra meu próprio corpo para me encolher o máximo possível.
            - Moça, está tudo bem com você?
            - Que lugar é esse? – Eu ainda tremia.
            Os visitantes não gostaram, pareceram irritados, eu fiquei com medo do que eles poderiam ser. Eles poderiam ser qualquer coisa, eu sabia que podiam, eu sabia que era possível. Essas... coisas... existiam.
            Quando um deles pegou o celular para fazer uma ligação, gritei. E se não fosse um celular? E se fosse alguma coisa que eu ainda era incapaz de reconhecer?
            Corri. Corri sem fazer ideia de pra onde ir.
            E Luca, onde estaria?
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            - Taby! – Ah, o sorriso de Luca, que saudade que eu tinha dele!
            - Luca! – Corri para o seu abraço.
            - Não tinha certeza se teria coragem depois do que eu te disse.
            Sim, ele tinha dito algo que eu não tinha ficado muito feliz. O que era? Meu Deus, como era difícil lembrar das coisas agora! Luca, me ajude, o que foi que você disse mesmo?
            - Imagina se eu desistiria de te ver por uma besteira, menino!
            O que era? O que era? Eu estava correndo sem parar no meio do Planalto Central, morrendo de medo e suja de sangue. O que houve? O que era?
            - Bom, confesso que entenderia se tivesse mesmo desistido.
            Uma noite realmente louca onde tudo o que você conhece vai deixar de existir e todo um mundo novo vai se abrir pra você. Era isso. Não parecia tão ruim. Por que Luca achou que eu desistiria por isso?
            - Não seja bobo, Luca, teria que ser um motivo muito mais forte pra eu desistir de vir. Você teria que ser um psicopata, por exemplo. – Rimos. Ele riu tão alto que pensei que tivesse associado a algo que não exatamente o que eu disse, não era tão engraçado assim.
            Então tinha mais coisa. Tinha que ter mais coisa.
            - Você sabe que eu não sou psicopata.
            Tinha mais coisa, eu sei que tinha.
            - Por isso que eu vim.
            - Você sabe que é muito pior que isso. – Ele sorriu. Eu derreti.
            Claro que tinha.
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            Caía a noite na capital federal e eu já mal sentia minhas pernas depois de um copo de um troço chamado diabo verde – que na minha terra é nome de desentupidor de privada! Andávamos feitos duas crianças pelos prédios não gradeados e eu sentia um misto são grande de emoções que era como se eu não estivesse de fato lá.
            E foi entre os pilares de um desses prédios que Luca me beijou.
            Lembro de pensar que o mundo ao meu redor tinha simplesmente parado de girar, que nada mais importava além de nós dois ali, meio invasores em um espaço residencial onde não conhecíamos ninguém, onde poderíamos ser vistos como dois clandestinos foras-da-lei que teriam que correr por sua vida e liberdade.
            Poucas vezes me senti mais viva, mais livre. Éramos dois corpos apaixonados numa cidade que nos era estranha, porque mesmo que ele estivesse morando ali, disse-me que pouco a conhecia e se perdia por meio de suas ruas codificadas.
            Eu carregava somente uma bolsa com algum dinheiro, documentos e um livro. Na cintura o casaco e no peito uma paixão que parecia ser maior que eu. Passaríamos a noite em claro, encontraríamos um cantinho pra fazer amor e eu voltaria pra casa no dia seguinte plena, feliz e ainda mais apaixonada.
            Aquele beijo me fez acreditar em tudo isso.
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            Eu perdi completamente a noção das horas. Andava sozinha pelas ruas sem fazer a menor ideia de pra onde ir. O calor já beirava o insuportável e meu corpo, acostumado com a umidade do sul, cobrava o alto custo de estar numa terra tão seca. Respirar doía com o inferno.
            Brasília, de forma geral, me parecia uma das cidades mais lindas que eu já tinha visitado. Tinha observado isso no dia anterior quando Luca me pegou no aeroporto e me levou direto pra rodoviária, mas eu tinha total consciência que minha paixão por Luca podia ter influenciado minha visão.
            Agora, que a paixão, a serenidade e a leveza tinham sido substituídas pelo medo, pelos lapsos de memória e pelas incertezas, eu ainda era capaz de ver beleza em seus intermináveis quarteirões.
            Eu só queria encontrar um lugar seguro, mas agora já nem sabia se isso existia. As pessoas me olhavam com curiosidade ou medo e eu não fazia a menor ideia de como eu parecia pra elas. Eu pareceria humana ainda?
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            Chegamos em um lugar que me foi dito ser algo como comercial sul ou qualquer coisa do tipo. Era cheio de bares  e pelas ruas mais escuras era possível contratar qualquer tipo de serviço... não convencional, de sexo a homicídio. Minha calça jeans clara, meu tênis Coca-Cola Shoes e minha regada rosa com rendinha contrastava de forma constrangedora com as poucas mulheres que lá estavam – a maioria disputando clientela na calçada – com suas roupas sedutoras e maquiagens pesadas.
            Luca riu do meu susto enquanto me puxava para dentro de um bar com gente que eu só sabia que existia por filmes, com um visual que eu nunca tinha visto ao vivo. A música que tocava era tão pesada quanto o ambiente, completamente tomado de fumaça de cigarro e maconha.
            Ele me ofereceu cerveja, não quis. Eu queria ir embora, voltar praquela região com os prédios abertos, voltar à sensação de liberdade ilusória que só agora eu me dava conta que poderia ter sido tirada dos muitos romances que li. Eu estava com medo daquele lugar e da maneira como Luca estava se comportando naquele momento.
            - Luca, eu queria ficar sozinha com você... – falei com a voz falhando, tentando não transparecer que o ambiente não me agradava em nada.
            - Taby, estamos sozinhos, ninguém aqui liga pra gente, se quiser dá até pra gente transar aqui mesmo que ninguém vai fazer nada a respeito. Olhe ao seu redor!
            Olhei. Realmente, as pessoas pareciam em transe.
            - Mesmo assim, Luca, a música é muito pesada, quase não dá pra respirar aqui dentro e... – Luca me agarrou pelo cabelo e me fez ver estrelas.
            - A gente vai ficar aqui, ok?
            - Tudo bem, tudo bem! – Respondi quase chorando.
            Quando ele soltou meu cabelo é que notei, pela fraca luz do caixa do bar, que seu rosto não era mais o mesmo. Talvez o horror tivesse se estampado no meu rosto, ou talvez aquilo que ele era – definitivamente não era humano – tinha o poder de telepatia.
            - Eu te falei que seria uma noite alucinada. – Disse ele rindo.
            - O que... você... é?
            - O que você acha que eu sou?
            Ele falava com muita calma na voz, estive perto de ficar tranquila se não notasse que eu provavelmente era a única... humana?
            - Eu não sei... eu nunca tive contato com nada místico ou coisa do tipo. – Ele me interrompeu com uma risada.
            - Místico? Taby, você é uma criaturinha graciosa!
            Foi então que ouvi um grito mais ao fundo do bar. E eu faria de tudo pra não ter olhado.
            Um olhar de horror e dor alcançou meus olhos e uma súplica por socorro completamente inaudível escapou pelos lábios de uma moça que não devia ser mais velha que eu. Jatos de sangue saltavam para todos os lados enquanto um fio vermelho e viscoso escorria pelos lábios abertos em expressão de pânico.
            Ao seu redor, três homens literalmente a devoravam viva. Arrancavam com os dentes os pedaços de tecido que se colocavam entre sua boca a e pele dela, mastigando avidamente pedaços inteiros de seus braços, seios e tronco. Um terceiro homem lhe arrancou as calças de couro e passou a comer-lhe as pernas.
            Ela estava em choque, não tardaria a perder a consciência cercada por um rio de sangue e dentes a arrancar pedaços de sua carne sem dó. Foi então que um deles lhe mordeu o pescoço e um jato de sangue manchou as paredes ao seu redor. Seu grito de dor se calou.
            Fiquei paralisada observando a cena sem conseguir esboçar nenhuma reação. Outros daqueles seres que antes me pareciam homens cercaram o agora cadáver da menina e se afastaram somente quando restava-lhe somente o esqueleto banhado por uma imensa poça de sangue.
            Luca era um deles.
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            Encontrei um jardim com plantas altas e me encolhi ali. Eu deveria perguntar as horas, tentar ligar para alguém, qualquer coisa para que eu pudesse sair o mais rápido possível daquele lugar. Estava agora sem qualquer pertence, sem dinheiro, documento, telefone, nada. Sendo mais exata, o “nada” incluía minha própria identidade porque tudo o que eu lembrava de mim mesma é que meu nome era Tábata, e somente porque Luca, nas lembranças, me chamava da “Taby”.
            Eu assistir uma moça da minha idade ser literalmente devorada. Ela demorou para morrer. Ela sentiu várias das mordidas que lhe arrancavam pedaços expressivos do corpo. Ela sabia que iria morrer e sentiu muita dor. E olhou fixamente pra mim. Eu jamais saberei se ela me olhou fixamente esperando socorro ou se como um aviso para que eu saísse correndo de lá. Eu jamais me perdoaria por não ter feito absolutamente nada porque o medo me paralisou.
            O gramado recém aparado e as folhas dos arbustos me agrediam a pele exposta, mas o medo das lembranças que ainda restavam da noite era tão mais forte que eu podia estar sendo fincada por uma agulha que ignoraria a dor.
            Eu sabia que lembraria de tudo.
            E eu sabia que a resposta da ausência de Luca viria.
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            - Eles COMERAM ela! – Gritei em choque olhando para Luca, que observava o esqueleto no chão com expressão de desejo.
            - Cadeia alimentar, Taby.
            - COMO ASSIM?
            Ele riu.
            - O leão come a gazela. Cadeia alimentar.
            - Não, Luca! Leões comem gazelas, mas não comem outros leões, aquilo ali foi seres humanos comendo outro ser humano!
            - Taby, eu sei que está escuro, mas você já notou que eu não sou o mesmo Luca de uma hora atrás. Também já notou que eles também não são iguais a você. Não é leão comendo leão, é leão comendo gazela.
            A gazela era ela. A gazela era eu. O bar estava lotado, eu não estava suficientemente perto da porta, eles eram maiores que eu. Eu iria morrer.
            - Você vai me comer? – Perguntei, desanimada.
            - Não era isso que você queria quando gastou suas economias só pra vir me ver? – Ele gargalhou com o próprio trocadilho, eu não achei graça.
            Foi quando eu senti uma mordida no meu ombro. Ia começar.
            Luca, até então sentado num banco do bar, não gostou da invasão e se levantou, irritado. O homem – ou seja lá o que era aquilo – riu, mastigando o pedaço do meu ombro que ele tinha acabado de arrancar. Meu ombro, ferido, doía com o inferno. E o inferno era exatamente onde eu estava. Mas eu não tinha tempo pra sentir dor, eu precisava pensar rápido ou em minutos o esqueleto banhado em sangue seria eu.
            - Ela é minha. – Falou Luca.
            - Aqui a gente divide refeição, irmão. – Respondeu o homem, depois de engolir o pedaço do meu ombro.
            - Eu não comi as suas garotas, parça, eu trouxe essa pra mim. Já tirou tua lasquinha, agora sai fora. – Disse Luca se aproximando do homem. Pro meu azar eu fiquei do lado errado da briga, pra correr pro lado de fora do bar eu iria precisar passar por eles.
            Fui me afastando tanto quando deu enquanto outros “coisas” me tocavam, um chegou a lamber a ferida fazendo meu estômago revirar.  Luca não gostou. Quando vi havia uma briga gigante acontecendo no bar e eu estava no fundo, completamente acuada. Foi quando uma ideia me passou pela cabeça: era matar ou morrer.
            Me arrastando pelas paredes, cheguei ao balcão onde, sem ser vista pelo barmen, peguei uma faca. Era grande o bastante para o meu plano e, com ela na mão, corri em direção à porta balançando ela na minha frente e enfrentando o banho de sangue dos ferimentos que eu causava em quem estivesse na minha frente.
            Cheguei na porta do bar com sangue escorrendo pelos cabelos e dor, muita dor. Eu não fazia ideia dos ferimentos que carregava, mas sabia que tinha sido mordida por vários no caminho pra porta. Luca me alcançou, estava ferido mas não pela faca que eu usava. Com um olhar sereno e parecendo o Luca que eu amava, me chamou.
            - Taby! Onde você está indo? Você não conhece nada! Você está banhada de sangue!
            Eu continuei correndo pra longe do bar, com a faca oculta pelo casaco ainda amarrado na cintura, e ele correndo atrás de mim.
            - Taby, meu bem! Não fuja! Você vai se perder! Sua bolsa ficou lá dentro, precisamos voltar!
            Parei, as dores das mordidas me venceram. Encostada em uma parede escura, Luca me alcançou.
            - Poxa, Taby, eu sinto tanto... – Ele me abraçou. Eu não estava paralisada, eu tinha um plano. Eu senti o bafo quente quando ele abriu a boca para me morder. Sem ele notar, tirei a faca da cintura e a enterrei por completo em sua barriga, interrompendo a mordida por um grito de dor.
            Sem esperar por mais nada, pulei por cima do corpo ainda vivo de Luca e corri. Corri como nunca, chegando ao gramado do Planalto Centro duas horas antes de nascer o sol.
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            Eu sentia a febre arder em meu corpo enquanto misturava o frio da luta contra infecções generalizadas e o calor do meio dia sob o sol escaldante de Brasília. Deitada sob os arbustos de um jardim qualquer, senti que minhas chances eram mínimas porque eu tinha feridas abertas por todo o corpo, feridas feitas por bocas com bactérias. Muitas, eu realmente não sabia precisar, mas sabia que meu corpo não aguentaria muito tempo.
            Fechei os olhos e pensei no Luca. No meu Luca, naquele que me beijou tão antes de virar o que virou, que eu jamais saberei o que era.
            Como num sonho bom, mergulhei nos lábios do homem que eu amava e me deixei flutuar. Encolhida naquele jardim, eu sabia que nunca mais deixaria Brasília.