quarta-feira, 22 de junho de 2016

Dentro da Órbita

                Ao longo da minha trajetória literária, por mil questões que envolvem uma tremenda falta de sorte de uma conta bancária precária, não tive exatamente uma rotina que permitisse que situações como a do objeto desse post virassem simplesmente rotina. Tem lá seu lado positivo porque a rotina poderia tirar a graça, e o lado negativo que eu adoraria que minha vida de fato fosse ASSIM.

                O fato é que minha vida começou a ganhar contorno de realização de sonho quando decidi deixar meu orgulho de lado e entrar no edital da prefeitura com meu livro novo (sim, existe um). Para tal contratei Claudio Troian, o mais badalado produtor cultural da cidade. Não apenas ingressamos com o projeto do livro na prefeitura como tivemos a oportunidade de nos conhecermos e Troian descobriu em mim uma pessoa sempre disposta a falar de literatura.

                Daí pra primeira oportunidade de falar de literatura foi só uma questão de tempo.

                O convite veio com o desafio de falar sobre literatura LGBT em um projeto de encontros entre escritores e leitores chamado Órbita Literária. Não foi exatamente um desafio no sentido que sou ativista dessa bandeira desde criança, mas inicialmente me bateu um conflito moral de ser eu, uma mulher hétero, a falar do tema, e não um autor ou uma autora efetivamente homossexual.

                Consultei várias amigas e amigos homossexuais sobre o assunto e todos acharam ótimo, me deram o maior apoio, então corri atrás de dicas de livros, autores e conteúdo para 1h30 de painel.

                Como eu escrevi um artigo científico sobre a questão da homossexualidade/ homofobia, eu tinha já um vasto material informativo pra enriquecer o evento. O que eu não sabia é que eu teria uma tragédia tristíssima pra comentar. O evento, por ironia, acabou acontecendo apenas uma semana depois do massacre de Orlando, até pareceu que foi programado por isso, mas, como eu comentei no próprio painel, todo dia é dia propício pra falar que homofobia mata porque ela mata todos os dias.


                Na véspera do esperado dia, foi agendada uma entrevista numa rádio de grande audiência por aqui, e eu, que quase não A-D-O-R-O dar entrevistas, já acordei segunda contando os minutos.

                A entrevista durou por volta de 20 minutos, fluiu tão naturalmente quando uma conversa, falamos não apenas do tema específico, mas em outras discriminações como o racismo, ainda tive a chance de corrigir um erro muito comum: muito homofóbico se defende alegando que não sente medo de homossexuais, logo, não pode ser “fóbico”, mas “fobia” não é apenas medo, mas desprezo e aversão, logo, desprezar homossexuais é homofobia.

                As perguntas foram ótimas, tive também a chance de falar um pouco do meu livro e reforçar o convite pra noite.


                A noite definitivamente não foi para os fracos. Um frio absurdo em plena segunda-feira, com provas na faculdade, foram elementos-chave para o público se manter na média dos encontros mesmo sob uma temática que está em alta. Mas se tem uma coisa da qual não posso reclamar é do público!

                Interatividade foi a grande marca. Consegui transmitir os dados e informações que levei tornando o encontro muito engrandecedor para a maioria – que jamais tinha efetivamente se aprofundado no tema – sem deixar de falar da literatura. Como todos que me acompanham sabem, considero a literatura uma “arma de libertação em massa”, e abraço, como artista, a missão de mudar, mesmo que lentamente, mesmo que pouco, o mundo.

                Defendo e sempre defenderei a arte como talvez a maior ferramenta de libertação, juntamente com a educação. É preciso que não apenas a sociedade aprenda a respeitar o artista, mas que esse reconheça sua importância e seu papel social e transforme o seu trabalho em uma forma de moldar mentes e corações em prol do nosso futuro.

                Foi essa mensagem que busquei transmitir em meu painel, porque a única maneira de vencer o ódio é o amor, e o amor não nasce sozinho, ele precisa ser plantado.








Alguns livros que eu indiquei na ocasião:

Amora – Natália Borges Polesso
São muitas. Amora é um livro de contos sobre mulheres e amores. Com uma sensibilidade ímpar, Natália explora o universo lésbico como deve ser: absolutamente normal. São mulheres comuns, cotidianas, com histórias igualmente comuns e cotidianas, que amam e se relacionam com outras mulheres.

Teleny – Oscar Wilde
Embora exista uma forte controvérsia sobre a autoria – originalmente a obra foi publicada anonimamente, mas o estilo de Wilde foi reconhecido – Teleny é considerado a primeira obra erótica homossexual. A obra conta a história de Camille, um jovem que, embora já se soubesse gay, assume sua sexualidade ao se apaixonar pelo pianista Teleny.

O 3º Travesseiro – Nelson Luiz de Carvalho
Polêmico do início ao fim, O 3º Travesseiro fala primordialmente de sexo. Embora haja, nas entrelinhas do relacionamento, amor entre os protagonistas Marcus e Renato, o que os move à união é o desejo sexual. Entretanto, embora seja um romance assumidamente gay, o elemento da bissexualidade é inserido na trama através da entrada de Beatriz na história. Ex-namorada de Renato, Beatriz acaba por se tornar amante de ambos.

Eu te amo, Phillip Morris – Steve McVicker
Steven Russel é um golpista, mas acima de tudo, um homem apaixonado. O livro conta a história real de Russel, um homem que abandonou sua vida regradinha de policial frequentador de igreja e marido devotado para arriscar a própria liberdade em nome de seu amor por Phillip Morris. Russel acaba sendo preso inúmeras vezes e se tornando mestre em fugas para permanecer ao lado de seu grande amor.

A menina submersa – Caitlin R. Kiernan
Imp é uma jovem que herdou a esquizofrenia da mãe e da avó. A história em si é uma viagem completamente insana em sua mente, em que nunca sabemos o que é real ou imaginário. De real em Imp temos seu lesbianismo e seu namoro com uma mulher transexual, bem como sua paixão avassaladora por uma moça que ela acolheu em sua casa tão logo a conheceu.

Will & Will – John Green e David Levithan
Trata-se de um romance tipicamente adolescente, com conflitos e paixões adolescentes. São dois “Wills” cuja vida se cruza em um determinado momento; um é tímido e gay, o outro arriscou a própria reputação para defender o melhor amigo, sendo esse gay e extremamente egocêntrico.

Laços de Sangue – Michael Cunningham
A história narra a trajetória de uma família normal, com seus conflitos e problemas. Um dos conflitos centrais da obra, entretanto, é a decepção do pai com o filho gay, mostrando a relação complicada entre pai e filho quando o pai não aceita a orientação sexual do filho. Para completar a equação, a melhor amiga de uma das filhas é uma drag queen.

Em nome do desejo – João Silvério Trevisan
Trevisan, ele mesmo homossexual assumido, trada de paixão carnal avassaladora, somando-se às histórias em que a proibição é um convite a se fazer o que outrora foi proibido. Para abordar a temática, Trevisan escolhe um seminário de padres, e o casal apaixonado é formado por meninos. O foco não é a homossexualidade deles, mas a proibição do desejo.

Giovanni – James Baldwin
David é mais uma vítima da heteronormatividade. Embora se saiba gay desde jovem, vive uma paixão heterossexual por uma mulher que lhe parece ideal: divertida e segura. Mas tudo desmorona quando conhece Giovanni. O amor fala mais alto e David se vê obrigado a encarar sua necessidade de sair do armário.


                Por fim, um agradecimento especial ao Troian, à Juliana, Tiago, Nano, Erni, todo o pessoal do Órbita, do Arco da Velha, Tomás da Rádio Caxias e todos os corajosos que enfrentaram o frio intenso pra me ouvir falar. Obrigada de coração por me dar uma amostrinha da vida que sempre sonhei!


sábado, 11 de junho de 2016

Eu ainda não sei quem você é

Desconheço seus sonhos
Seus medos
As coisas que te fazem feliz
Desconheço seus sopros
Os ventos
Que te trouxeram até aqui
Desconheço passados
E os zelos
Por tudo o que represento pra ti

Eu ainda não sei quem você é


terça-feira, 7 de junho de 2016

2 anos sem o gigante

Em julho de 2007, fui ao Beira-Rio, em Porto Alegre, entregar ao meu ídolo Fernandão um conto que eu havia escrito em sua homenagem.

O conto permaneceu guardado na gaveta até que, em 07 de junho de 2014, meu único ídolo do esporte faleceu tragicamente em um acidente de helicóptero. Na ocasião, publiquei no meu antigo blog em sua homenagem.

Hoje, no aniversário de 2 anos sem o gigante, republico nesse blog.


O dia em que o futebol renasceu

            Sexta-feira, um fenômeno único chama a atenção de todos os habitantes do planeta Terra. Sol, todos os planetas do sistema e seus satélites naturais se alinham de maneira inexplicável. Astrônomos com os olhos virados em telescópios, NASA em alerta absoluto, adeptos da teoria do caos já preveem tragédias em massa ao redor do planeta. As autoridades de todos os países planejam a sobrevivência da raça humana depois do advento de um alinhamento jamais concebido nem nas teorias mais infundadas.

            E naquele estado de alerta generalizado, ao longo de todo o final de semana ouviu-se aterrorizadas exclamações em todos os idiomas:

            - Uuuuhhhh!

            - Não!!!!

            - M&*%#ND$%&MN!!!!!

            Passado o fatídico final de semana, representantes da ONU se encontravam em seus postos aguardando o bombástico relatório das conseqüências de tão grave alinhamento. Foi então que, na porta do plenário, surgiu ninguém mais, ninguém menos que... o presidente da FIFA!

            A tragédia estava comprovada: brigas de torcida, goleiros sentindo-se milagreiros, artilheiros em severas crises de depressão, dirigentes reunidos ao redor do globo na busca desesperada de explicações. Em laboratórios de alta tecnologia, milhares de bolas eram destruídas para estudos científicos, traves eram arrancadas dos gramados e minuciosamente analisadas, placas inteiras de gramado eram retiradas dos principais estádios e autores dos piores gols perdidos passavam por uma bateria de exames físicos e neurológicos.

            - Temos uma conclusão? – questionou o presidente do Uzbequistão sentado em sua tribuna. O presidente da FIFA, afrouxando o nó da gravata e secando a testa com o lenço do paletó olhou seriamente para os colegas ali presentes com uma pasta na mão.

            Sentando-se em uma tribuna reservada à ele para a ocasião, o homem retirou um imenso relatório da pasta, ajeitou o óculos sobre o nariz, pigarreou levemente e pôs-se a falar.

            - Não temos ainda todos os dados, mas temos pessoas pesquisando em todas as partes do mundo. Porém, já temos uma constatação: todos os jogos oficiais do planeta terminaram empatados e sem gols.

            - O senhor está nos dizendo que tivemos um placar universal de zero a zero em jogos oficiais? – Levantou-se o presidente da Sibéria claramente alterado.

            - Nobre presidente, a constatação é ainda pior. – Seguiu o presidente da FIFA. – Temos notícia de um número aproximado de um milhão de jogos não-oficiais com o mesmo resultado.

            - O que o senhor quer dizer com jogos não-oficiais? - Questionou o presidente do Cazaquistão

            - Me refiro a todos os jogos que não valem títulos reconhecidos pela FIFA, como peladas de final de semana entre grupos de amigos e empresas. – Imediatamente todos os presidentes de todas as nações representadas na ONU começaram a falar ao mesmo tempo, quando cessou a confusão, o presidente da FIFA seguiu seu discurso. – Senhores, o dado é ainda mais alarmante do que podem imaginar, tivemos milhares de pênaltis perdidos e uma final de campeonato teve que ser suspensa depois de quase cinco horas ininterruptas de cobranças de pênalti sem que o placar se alterasse.

            - Meu Deus....- sussurrou o presidente iuguslavo, encostando a cabeça em sua tribuna entre às lágrimas.

            A imprensa mundial, sensacionalista, tratava o fato como o fim do futebol. Um homem, que declarava ter recém retornado da abdução, foi à público noticiar que não houveram gols em Marte também, e que o comandante do disco voador comentou que o mesmo aconteceu em Júpiter, Vênus e Saturno.

            O resultado da tragédia era imenso, 122 mil jogadores anunciaram aposentadoria, 18 mil árbitros assinaram contratos com editoras para lançar livros sobre o fato, 37 mil atacantes saíram lesionados depois de chutarem as traves, 425 mil bolas de futebol foram estraçalhadas em nome da ciência, 273 mil goleiros resolveram abrir sua própria igreja e 9 gandulas foram convidados para posarem nus.

            Durante toda aquela semana não houve jogos de futebol em nenhuma parte do planeta, milhares de teorias foram levantadas, torcedores traumatizados procuravam explicações e o medo do fim do futebol provocou crises de estresse e depressão em massa. Os hospitais ficaram lotados, psicólogos, psiquiatras e cardiologistas ficaram com as agendas lotadas, os estádios de futebol recebiam flores e faixas pretas como demonstração de luto, grupos religiosos uniam-se em nome da volta do futebol... a comoção era global.

            Um homem, um gaúcho, estudando as posições do planeta, convocou a imprensa no sábado seguinte ao fenômeno. Sua teoria era de que todos os planetas e satélites alinhados formaram uma grande barreira cósmica, impedindo que qualquer objeto redondo ultrapassasse seus limites, como se o universo fosse uma grande goleira.

            Independente da crença de cada um, dirigentes de futebol se reuniram e, em comum acordo com a FIFA, arriscaram realizar uma única partida naquele final de semana. Os planetas lentamente desalinhavam o mundo merecia essa segunda chance. Naquele domingo, a imprensa do mundo todo e torcedores de todas as partes do globo concentrava-se no Beira Rio, esperando desesperadamente por um gol, apenas um, para trazer de volta a esperança.

            Durante todo o jogo, as pessoas roíam unhas, era certamente o jogo mais importante da história da humanidade. Os eternos rivais Grêmio e Inter jogavam com garra o Gre-Nal mais sofrido de todos os tempos. Ambos jogavam com altíssimo nível, um jogo quase sem faltas, disputadíssimo, mas cada gol perdido arrancava uma lágrima de cada uma das pessoas, milhares delas, que acompanhavam o jogo histórico em todo o planeta Terra e até mesmo fora dele.

            A esperança se esvaía em lágrimas quando o cronômetro indicava que faltava menos de um minuto para o fim da partida e nenhum gol havia sido feito, mesmo com a qualidade indiscutível no ataque dos rivais. Foi então que, praticamente aos 45 do segundo tempo, em um contra-ataque quase sobrenatural, raspando na trave, a bola entrou. Fernandão, do Internacional de Porto Alegre, foi o autor não de um gol, mas da renovação da crença em uma vida melhor.

            Talvez o mais marcante naquele gol foi a emoção que tomou conta de todos: só houve um homem, um único homem, que não celebrou o gol: o goleiro do Grêmio. Todo o restante da população mundial vibrava, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres choravam juntos, por algumas horas o planeta inteiro dividia o mesmo sentimento.

            A partir daquele dia o futebol voltou ao normal, os gols voltaram a acontecer, as torcidas infelizmente voltaram a brigar, Fernandão foi aclamado herói universal e ganhou estátua nos principais estádios do mundo; dos 122 mil, somente 6 jogadores efetivamente se aposentaram, 14 mil árbitros tiveram os contratos para livros cancelados, os 37 mil atacantes se recuperaram bem, as 425 mil bolas foram refabricadas com o autógrafo do novo herói estampado, as 273 mil novas igrejas conquistaram algumas dezenas de fiéis cada uma e somente 4 dos 9 gandulas posaram nus.


Maya Falks      

Na entrega do conto ao gigante.